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Magali Cunha Foto: O Globo

Lições da Copa: nós e o Outro

Que a hospitalidade e a generosidade com o estranho, o forasteiro, não se manifestem só em grandes eventos, mas no dia a dia também

A Copa do Mundo no Brasil está chegando ao fim. Muito já foi e muito ainda será dito sobre ela. Tudo indica que nem o fiasco da seleção brasileira nem os problemas identificados, usuais em grandes eventos, apagarão as marcas positivas do que sempre é, no Brasil, uma celebração popular: o futebol. Uma delas, destacada pela imprensa nacional e internacional, foi a hospitalidade com que os visitantes foram recebidos. Sobre isso, chamou a minha atenção o caso de pessoas que se cadastraram e abriram suas casas para abrigar visitantes de diferentes países que tinham ingresso, mas não recursos para ficar em hotéis.

Nas entrevistas, tanto brasileiros quanto estrangeiros ressaltaram a beleza da possibilidade de encontro e intercâmbio e do processo educativo para a vida. Com isso se destacou um elemento muito significativo da cultura brasileira: a hospitalidade e a acolhida do Outro, acompanhadas da gentileza.

Claro que não podemos tampar o sol com a peneira e deixar de reconhecer o oposto. Em nosso país há fortes expressões de desconsideração com o Outro, com o estranho no cotidiano. Isso se reflete em violência e intolerância. Muitas vêm dos comumente identificados como bandidos (assassinos, assaltantes, traficantes ilegais), outras de quem pratica discriminações, vandalismo ou linchamento moral. Com isso, há quem diga que a imagem do brasileiro cordial está se extinguindo.

Ainda temos que reconhecer que vivemos num tempo de muito individualismo e desconfiança. Somos levados a conviver apenas com aqueles que são como nós, dão segurança e nos fazem sentir bem. Daí praticarmos a exclusão, a separação. Somos guiados por máximas como: quem conta e quem não conta neste mundo? Com quem vale e com quem não vale a pena conviver? Como consequência, muitos se tornam forasteiros, estrangeiros em sua própria terra... Moradores de favelas, sem-terra, indígenas, mulheres sozinhas, dependentes químicos, homossexuais, idosos, negros, desempregados, catadores de lixo, portadores de HIV, pessoas com deficiência, quem vive diferentes formas de cultivar a fé... e tantos outros.

A questão se agrava quando as religiões, que deveriam ser as primeiras a testemunhar a perspectiva da acolhida e da hospitalidade, acabam reproduzindo a postura de exclusão-separação-seleção. Entre as igrejas, são comuns interpretações de quem conta e quem não conta para Deus; pregações e canções que demarcam distinções entre “filhos de Deus” e “criaturas”; quem é ou não é vencedor, quem tem a bênção, quem não tem, quem é santo ou espiritual...

No entanto, atitudes como as das pessoas que abriram suas casas durante a Copa do Mundo para estranhos, ou daquelas que, gratuita e gentilmente, ajudavam visitantes mostram que é possível ter esperança. Fazem lembrar os escritos da Bíblia cristã sobre os povos do oriente, os nômades, eternos estrangeiros, estranhos. Eram os hebreus, os habiru, aqueles que viviam de atravessar fronteiras em busca de vida. E esses eram alvo da ação de Deus. Deus caminhava com eles.

Acolher o forasteiro, na perspectiva desses escritos, era o mesmo que acolher o próprio Deus. Daí o valor da hospitalidade. Há muitas histórias sobre isso nos textos bíblicos, e, entre elas, as que contam que Jesus de Nazaré foi acolhido na casa de muitas pessoas “estranhas”, algumas de outras culturas e religiões, conviveu e comeu com elas. Por isso ele disse aos seus discípulos: “Todas as vezes que fizerem isso (acolher o estranho), a mim estarão fazendo”.

Assim seja: que atitudes como as das pessoas que abriram suas casas para hospedar estranhos e as das que foram gentis com visitantes não aconteçam somente em grandes eventos. Que sejam práticas do cotidiano, especialmente com quem está logo ali.

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