NELSON ASCHER
Paradoxos do multiculturalismo
A cultura de cada grupo, influenciada por sua hist?ria, pode e deve ser comparada ?s demais
MULTICULTURALISMO ? a doutrina segundo a qual, malgrado cada grupo humano ter sua cultura individual, todas se equivalem. Essa id?ia contrap?e-se ? que prevaleceu durante a maior parte da hist?ria. O normal outrora era cada grupo considerar a si e ? sua cultura superiores aos restantes: somente os membros de nossa tribo eram de fato gente, falavam uma l?ngua que era mais que um balbucio, veneravam o(s) verdadeiro(s) deus(es) e se comportavam de maneira civilizada. Os demais n?o passavam de b?rbaros ou selvagens.
A vis?o multiculturalista se arraigou como uma esp?cie de fundamento e decorr?ncia do anti-racismo. A equa??o soava simples e auto-evidente: se nenhum grupo ou etnia (o que antigamente se chamava de “ra?a”) ? biol?gica, neurol?gica e psicologicamente melhor nem pior, sua cultura, manifesta??o de sua humanidade essencial, tampouco deve s?-lo. E, se todas as culturas se equivalem, isso se aplica tamb?m aos in?meros grupos ou etnias que as criaram.
Tal relativismo cultural antecede os movimentos anti-racistas que se difundiram ap?s a Segunda Guerra. Eles se originam, na virada dos s?culo 19/ 20, da converg?ncia de duas disciplinas recentes: a antropologia e a ling??stica. Antes de os ling?istas principiarem a estudar comparativamente as l?nguas, a cren?a na superioridade desta ou daquela era t?o corriqueira quanto sua contrapartida racial.
Os especialistas, no entanto, comprovaram que qualquer idioma, mesmo aqueles usados pelos povos mais materialmente primitivos, era t?o complexo em termos estruturais quanto qualquer outro. A gram?tica e sintaxe do inuit falado pelos esquim?s ou da l?ngua de um grupo de ca?adores da Amaz?nia ou Nova Guin? nada fica a dever ?s do grego cl?ssico ou do alem?o.
Os antrop?logos que se dedicaram ao trabalho de campo e aprenderam os idiomas nativos das Am?ricas ou Austr?lia constataram, paralelamente, que essa complexidade n?o se restringia ao campo da fala, mas se estendia, isto sim, a institui?es sociais como as relativas ao parentesco, ? religi?o, aos rituais, aos h?bitos alimentares. A percep??o, ademais, de que o estado das tribos estudadas pressupunha uma prolongada trajet?ria de tentativas e erros que resultaram numa adapta??o maximizada a seu meio ambiente levou os investigadores a banir a palavra “primitivo” da descri??o deste ou daquele segmento da humanidade.
E, enfim, para se engajar mais ativamente na luta contra o racismo, n?o satisfeito com demonstra?es te?ricas, o multiculturalismo edificou um sistema de valores que se op?e ao de seus advers?rios. Se os racistas pregavam a pureza racial, cultural e ling??stica, o multiculturalismo v? todo conv?vio como algo positivo e desej?vel. Se aqueles reivindicavam a separa??o e o distanciamento, este aspira ? justaposi??o espacial de todas as culturas, embora seus adeptos a rigor se dividam entre os que prop?em a mescla, a mesti?agem e os que lutam pela preserva??o, em nome da “autenticidade”, sobretudo das culturas minorit?rias e “amea?adas” seja pelas majorit?rias, seja pela globaliza??o.
Nem ? aleat?ria essa divis?o, pois o que se verifica na pr?tica ? que algumas culturas est?o mais abertas para as outras do que as demais. Quer se admita, quer n?o, o que acontece ? que algumas t?m um vi?s universalista que transparece no seu interesse e curiosidade on?voros, enquanto outras, auto-satisfeitas e fechadas em si mesmas, preferem o suic?dio ? conspurca??o. Para ficarmos num exemplo que beira o caricatural, que bem poderia advir da s?ntese de uma cultura secularista e religiosamente tolerante com outra, como a dos astecas, em cujo centro se encontra uma religi?o fundamentada no sacrif?cio humano?
Mas como ? que culturas que, devido ? sua humanidade comum, deveriam reagir de modo semelhante diante do mesmo desafio acabam se comportando de forma t?o diferente? ? que talvez o paralelo entre cultura e l?ngua esteja errado. A linguagem est? provavelmente mais pr?xima das caracter?sticas biol?gicas que definem um grupo, caracter?sticas de base que apenas podem ser alteradas, aqui e ali, lenta e quantitativamente.
J? a cultura seria um fen?meno de segundo grau, como, por exemplo, a literatura. Qualquer idioma pode produzir grandes autores, mas alguns o fazem mais e melhor. Na cultura, como na literatura, a hist?ria, transcendendo o cumulativo, opera transformativamente. Tendo em vista que a cultura de cada grupo ? influenciada por sua hist?ria, ela n?o s? pode, como deve ser comparada com as restantes. Sem falsas equival?ncias.