Juan G. Bedoya
Em Madri
A chamada de Bento 16 para a luta ideol?gica contra o pluralismo moral e a modernidade inclui restituir o inferno. “O inferno, do qual pouco se fala hoje em dia, existe e ? eterno”, disse o pont?fice cat?lico. O papa Ratzinger, que vai completar dois anos no cargo, esteve na igreja Santa Felicidade e Filhos M?rtires em Roma para pregar como um simples p?roco.
Em homilia, Bento 16 colocou sobre a mesa novamente armas do catolicismo cl?ssico
“Nosso verdadeiro inimigo ? nos unirmos ao pecado que pode nos levar ? ruptura de nossa exist?ncia”, disse ele na homilia. Antes tinha desenhado a figura de um Deus “de justi?a”, portanto castigador.
Em sua chamada ? intoler?ncia, com o relativismo e a laicidade, Bento 16 decidiu p?r sobre a mesa as armas do catolicismo cl?ssico. O alem?o acredita que a vida crist? ocidental ? “uma vinha devastada por javalis”. Para enfrentar a crise, a for?a da Igreja n?o est? no di?logo nem na toler?ncia, mas na volta ?s origens. O papa exige ativismo, n?o s? de seus prelados (cerca de 5 mil em todo o mundo, entre bispos, arcebispos e cardeais); tamb?m aos fi?is crentes e, mais que ningu?m, aos pol?ticos que se dizem cat?licos.
As teses sobre como recuperar o primeiro plano perdido foram expostas por Bento 16 em 13 de mar?o passado, em uma exorta??o pastoral burilada durante um ano e meio. Foi o primeiro s?nodo do pontificado Ratzinger. Na presen?a de cardeais, arcebispos e bispos do mundo todo, o papa, que durante d?cadas presidiu a Congrega??o para a Doutrina da F?, a antiga Inquisi??o cat?lica, desafiou os reunidos a chegar ao cerne da crise do cristianismo para que Deus, um “proscrito na Europa”, segundo Bento 16, volte a figurar na agenda de uma sociedade de batizados que j? n?o faz caso da religi?o.
A proclama??o de que “o inferno existe e ? eterno” ? a continua??o dessa estrat?gia papal. O curioso ? que seu antecessor, o papa Jo?o Paulo 2?, morto h? dois anos, corrigiu a fundo e na dire??o contr?ria o conceito tradicional do catolicismo sobre o inferno. Ele o fez no ver?o de 1999, em quatro audi?ncias consecutivas, cada uma dedicada a desmontar a credulidade popular sobre o c?u, o purgat?rio, o inferno e, inclusive, o diabo. “O c?u”, disse ent?o o papa polon?s, n?o ? “um lugar f?sico entre as nuvens”. O inferno tamb?m n?o ? “um lugar”, mas “a situa??o de quem se afasta de Deus”. O purgat?rio ? um estado provis?rio de “purifica??o” que nada tem a ver com localiza?es terrenas. E Satan?s “foi derrotado: Jesus nos libertou de seu temor”.
A homilia sobre o inferno foi pronunciada pelo papa Jo?o Paulo 2? na audi?ncia de quarta-feira, 28 de julho de 1999. Ele disse: “As imagens da B?blia devem ser corretamente interpretadas. Mais que um lugar, o inferno ? uma situa??o de quem se afasta de modo livre e definitivo de Deus”. Por que o papa polon?s revisou ent?o a doutrina oficial sobre o al?m? A primeira resposta tinha a ver com “o ass?dio da ci?ncia”, nas palavras dos te?logos. Roma n?o queria repetir a amarga hist?ria de Galileu.
A segunda raz?o tinha a ver com as estat?sticas: 60% dos cat?licos acreditam em Cristo, mas n?o no inferno ou no para?so. Por ?ltimo, aquele papa cumpria uma obriga??o conciliar, adiada muito mais do que seria prudente. A Igreja vive em seu tempo e precisa atualizar a interpreta??o feita no passado dos textos sagrados. Trata-se do “aggiornamento”, a palavra preferida dos papas Jo?o 23 e Paulo 6?, promotores do revolucion?rio Vaticano 2?, realizado entre 1962 e 1965.
A decis?o de Bento 16 de voltar a p?r na mesa a id?ia do inferno eterno, sem matizes, choca-se com esse passado recente. N?o ? sua primeira volta ao passado. Tamb?m autorizou as missas em latim e com o oficiante de costas para os fi?is, para citar um exemplo. O curioso ? que h? menos de um ano, em 6 de outubro de 2006, esse papa mantinha o tim?o de Jo?o Paulo 2? publicando o documento dos especialistas sobre a inexist?ncia do limbo, outra das pe?as chaves do al?m cat?lico. Segundo os catecismos cl?ssicos, o limbo das crian?as era o lugar aonde iam parar os que morriam sem o uso da raz?o e sem terem sido batizados. Um lugar sem tormento nem gl?ria. O castigo consistia em viver em uma terceira classe de cavidade diferente do c?u e do inferno, na qual as almas inocentes, al?m de ser privadas de gl?ria, sofreriam a condena??o da aus?ncia dos que haviam tido a sorte de salvar-se: pais, irm?os e o resto da fam?lia.
A doutrina incentivava com esses argumentos o batismo r?pido dos rec?m-nascidos. A doutrina que coloca no limbo as crian?as mortas sem ter cometido pecado, mas com a culpa do pecado original n?o lavada pelo batismo, ? de origem medieval e pouco relevante entre os te?logos modernos, a n?o ser porque se irmana com a id?ia, tamb?m afastada pelo Vaticano 2?, de que fora da Igreja Cat?lica n?o h? salva??o.
A decis?o de fechar o limbo foi imposta por Jo?o Paulo 2?, encarregando do assunto uma comiss?o teol?gica internacional liderada pelo hoje papa Ratzinger. A encomenda tinha sua import?ncia porque n?o era s? liquidar a id?ia de c?u e inferno como lugares concretos no firmamento, mas uma revis?o total das teses cl?ssicas sobre o pecado original. Desde Santo Agostinho ao Vaticano 2? a Igreja de Roma havia sustentado a vis?o cl?ssica do homem em pecado desde que Eva e a serpente enganaram Ad?o para comer juntos uma ma??.
A escatologia crist? posterior ao Vaticano 2? afirma que o famoso bispo de Hipona, ao estender a todos os homens a culpa por aquele pecado original – ocorrido em um lugar chamado para?so que a ci?ncia tamb?m n?o conseguiu encontrar -, o que fez foi uma m? tradu??o de uma das ep?stolas de S?o Paulo, a Carta aos Romanos, cap?tulo 5?, vers?culo 12.
Tradu??o: Luiz Roberto Mendes Gon?alves do jornal El Pa?s, publicado no site UOL, dia 18 de abril de 2007.
