O pecado da ignor?ncia
O cardeal que trabalha pela reconcilia??o entre judeus e cat?licos diz que ? preciso educar para evitar a intoler?ncia e o radicalismo
Gabriela Carelli e Fabiano Accorsi
“A Igreja n?o pode negar seu passado. Jesus era judeu, vivia como um judeu, rezava como um judeu. Nossas religi?es s?o complementares”
O cardeal alem?o Walter Kasper, de 72 anos, ? uma das vozes mais influentes da Igreja Cat?lica. Assessor de Jo?o Paulo II, foi citado como um dos poss?veis candidatos a sua sucess?o. Hoje, est? entre os colaboradores mais pr?ximos de Bento XVI, de quem ? amigo h? quarenta anos. Te?logo respeitado, ele demonstrou um estilo pastoral inovador quando era bispo na Alemanha. Foi um dos tr?s bispos a permitir a comunh?o de fi?is divorciados, em 1993. Essa pr?tica foi interrompida no ano seguinte, a pedido do Vaticano. Desde 2001 Kasper preside o Conselho para a Promo??o da Unidade dos Crist?os, um ?rg?o ecum?nico, e tamb?m a Comiss?o para as Rela?es Religiosas com o Juda?smo, destinada a p?r fim ao cisma milenar entre o cristianismo e o juda?smo. Ele empenha-se principalmente no combate ao anti-semitismo, que ressurgiu com renovado vigor devido aos conflitos no Oriente M?dio. Kasper esteve no Brasil na semana passada para participar de uma celebra??o inter-religiosa com a comunidade judaica. Em S?o Paulo, deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – O Conc?lio Vaticano II inaugurou uma nova era no di?logo entre a Igreja Cat?lica e outras religi?es, em especial o juda?smo. Mas muitas feridas ainda est?o abertas. Como fech?-las?
Kasper – O di?logo entre lideran?as religiosas de judeus e cat?licos avan?ou muito nessas quatro d?cadas. Desde a publica??o do documento Nostra Aetate, que absolveu os judeus da responsabilidade pela crucifica??o de Cristo, a Igreja Cat?lica n?o tem medido esfor?os para demonstrar publicamente seu arrependimento pela injusti?a contida naquela acusa??o. Jo?o Paulo II avan?ou muito no di?logo com os judeus e foi o primeiro papa a visitar uma sinagoga. Mas ? muito dif?cil apagar 2.000 anos de hist?ria em t?o pouco tempo, principalmente entre a popula??o de fi?is. N?o ? dif?cil encontrar entre os cat?licos quem ainda acredite que os judeus assassinaram Jesus. Entre os judeus, o ressentimento em rela??o aos cat?licos ainda ? grande. Acredito que a ferida ainda est? aberta e h? muito que fazer.
Veja – O anti-semitismo pode refluir com uma aproxima??o mais intensa entre o Vaticano e os judeus?
Kasper – H? dois motivos principais para que essa aproxima??o se consolide. O primeiro ? o impacto que a reconcilia??o entre as duas religi?es tem na paz mundial. O entendimento envolve quest?es humanit?rias, de valores, de fam?lia, de solidariedade. Por isso, a inten??o da Igreja ? partir o mais breve poss?vel para o que chamamos de coopera??o pr?tica. N?o devemos manter o di?logo e a reconcilia??o circunscritos ?s considera?es te?ricas e aos encontros entre l?deres religiosos. Devemos agir. Levantar dinheiro para crian?as judias famintas na Argentina, como fizemos h? pouco tempo, por exemplo. N?o por elas serem judias ou cat?licas. Mas por serem crian?as famintas. Os problemas do mundo de hoje, como o terrorismo, afetam a todos da mesma forma e temos de buscar uma solu??o em conjunto. Criar um clima de amizade ? uma forma de inibir o ?dio. O segundo motivo da necessidade desse di?logo ? a busca da Igreja Cat?lica por sua pr?pria identidade. N?o podemos mais negar nosso passado. Jesus era judeu, vivia como um judeu, rezava como um judeu. Somos complementares. Para os judeus, acredito que o apoio da Igreja Cat?lica e a reconcilia??o sejam essenciais para o combate ao anti-semitismo.
Veja – Um dos maiores obst?culos para a melhora das rela?es entre judeus e cat?licos ? a recusa da Igreja em permitir o acesso a todos os documentos do Vaticano sobre o papa Pio XII, acusado de se omitir diante do holocausto durante a II Guerra. A Igreja vai manter essa posi??o?
Kasper – ? obriga??o da Igreja Cat?lica investigar tudo o que houve em seu passado. N?o posso afirmar que o novo papa ir? permitir o acesso a esses documentos, apenas que o Vaticano est? tentando apressar o acesso a eles. N?o acredito, por?m, que a revela??o desses documentos ir? trazer grandes mudan?as. Nem posso precisar que a abertura total desses arquivos ir? mudar o sentimento do povo judeu em rela??o ? Igreja Cat?lica, para o bem ou para o mal. H? quest?es maiores por tr?s desse sentimento.
Veja – A revela??o desses arquivos poderia, enfim, encerrar a discuss?o?
Kasper – O que consta desses arquivos s?o fatos, mas que passar?o indubitavelmente por interpreta?es. ? muito perigoso afirmar que Pio XII era anti-semita s? pelo que est? escrito. Apesar de tudo o que ocorria durante a II Guerra, as pessoas estavam a salvo em Roma. Os tempos eram totalmente diferentes. Podemos perpetuar injusti?as.
Veja – O senhor acredita que as acusa?es contra o papa Pio XII sejam infundadas?
Kasper – N?o h? d?vida de que h? acusa?es injustas. Cham?-lo de o papa de Hitler, por exemplo. Isso ? sensacionalismo. Pio XII viveu um per?odo muito conturbado. Os problemas n?o eram s? de ordem humanit?ria. Havia quest?es pol?ticas. H? quem defenda a tese de que ele poderia ter falado mais publicamente sobre as atrocidades nazistas e, assim, salvado mais judeus. ? uma hip?tese. Mas h? outra, muito importante: e se ele tivesse falado mais sobre o assunto publicamente? Ele poderia, em contrapartida, ter sido v?tima da vingan?a de Hitler. O que fazer numa situa??o dessas? O papa Pio XII deve ter passado por uma intensa batalha interna. N?o deve ter sido f?cil. Todo cuidado era pouco nesses tempos dif?ceis.
Veja – Esses documentos podem, de alguma forma, impedir a canoniza??o do papa Pio XII?
Kasper – N?o. A Igreja leva em conta muitos aspectos para admitir um novo santo, e n?o me parece que esses documentos sejam decisivos no caso da canoniza??o de Pio XII.
Veja – Jo?o Paulo II foi o papa que mais avan?ou na reconcilia??o com os judeus. Como Bento XVI pretende continuar a busca pelo entendimento entre as duas religi?es?
Kasper – O novo papa vai continuar o trabalho de Jo?o Paulo II. Bento XVI demonstrou isso recentemente ao visitar uma sinagoga na cidade alem? de Col?nia. Foi um ato repleto de simbolismo: um papa alem?o numa sinagoga destru?da pelos nazistas na II Guerra. N?o h? maior prova do interesse dos cat?licos na continuidade da reconcilia??o. Joseph Ratzinger sempre foi muito pr?ximo de Jo?o Paulo II. Era um dos principais pensadores por tr?s do antigo papa. Logo depois de sua elei??o, falava-se nos bastidores do Vaticano que Bento XVI era aben?oado, numa refer?ncia a sua amizade com Jo?o Paulo II. Rec?m-eleito, ele disse ?s pessoas a seu redor que o importante era continuar o trabalho do antecessor.
Veja – O anti-semitismo voltou a crescer no mundo. O senhor acredita que as posi?es da Igreja Cat?lica ao longo da hist?ria sejam em parte respons?veis por esse crescimento?
Kasper – O anti-semitismo ? uma realidade h? muito tempo. Existe muito antes do cristianismo. N?o podemos p?r a culpa apenas na Igreja Cat?lica. N?o temos de ficar remoendo acontecimentos. O importante ? educar as novas gera?es para evitar a dissemina??o dessa praga. A ignor?ncia ? a chave para a intoler?ncia e para o radicalismo. Por isso mesmo a solu??o ? educar, mostrar quem foram os judeus e contar a verdadeira hist?ria.
Veja – Quais as raz?es principais dessa nova onda de anti-semitismo?
Kasper – Esse novo sentimento tem uma base pol?tica. Hoje, o anti-semitismo ? justificado pelo anti-sionismo. As pessoas que rejeitam o Estado de Israel e sua pol?tica usam essa posi??o para justificar o ?dio aos judeus. Mas os elementos principais continuam os mesmos: estupidez e xenofobia.
Veja – Entre os desafios atuais da Igreja, qual o senhor destacaria?
Kasper – H? um grande desafio que preocupa a Igreja Cat?lica: o terrorismo. Ele ofende a Deus e aos homens e tem de ser combatido.
Veja – O que a religi?o pode fazer para combater o terrorismo?
Kasper – A Igreja n?o pode interferir em termos pol?ticos, muito menos militares, ? ?bvio. Mas no Oriente M?dio, em especial nas ?reas em conflito em Israel, a Igreja pode ser a intermedi?ria entre judeus e mu?ulmanos. Temos obtido bons resultados na aproxima??o de membros das duas comunidades. Em rela??o ao Isl?, apesar de a Igreja n?o admitir oficialmente a liga??o direta do terrorismo com a religi?o mu?ulmana, o papa Bento XVI tomou uma atitude importante recentemente. Pela primeira vez, pediu a l?deres isl?micos que rejeitem qualquer interpreta??o do Isl? que inspire o terrorismo. Trata-se de uma atitude imprescind?vel no momento atual. Vivemos uma era em que ningu?m pode se dar ao luxo da apatia.
Veja – Qual sua opini?o sobre o tratamento dado ?s mulheres nos pa?ses mu?ulmanos?
Kasper – Pessoalmente, acho aquelas roupas e aqueles v?us muito feios… Mas isso ? uma quest?o pessoal. O fato ? que Deus criou o homem e a mulher com suas diferen?as, mas com a mesma dignidade. Temos de encarar homens e mulheres como seres complementares, detentores dos mesmos direitos.
Veja – Na Igreja Cat?lica as mulheres n?o podem ser sacerdotisas. Isso n?o ? discrimina??o?
Kasper – A discuss?o sobre o papel da mulher no catolicismo n?o envolve direitos humanos. ? uma quest?o de tradi??o. A ordena??o feminina ? uma mudan?a h? muito comentada na Igreja e h? quem espere que Bento XVI adote uma nova posi??o a respeito do assunto. O novo papa n?o deu sinais de que esteja disposto a isso. Mesmo se aprovada, a ordena??o feminina ? algo que demorar? d?cadas para ser aceita e implementada.
Veja – A debandada de fi?is ? um dos grandes problemas da Igreja atualmente. O senhor acredita que o papado de Jo?o Paulo II, conservador em muitos aspectos, tenha contribu?do para afastar os fi?is?
Kasper – Eu tenho uma vis?o diferente. O que pode ser avaliado como muito conservador na Igreja Cat?lica talvez seja julgado como progressista em outras igrejas mais conservadoras, como a Igreja Ortodoxa e o islamismo. N?o vejo o papado de Jo?o Paulo II como conservador. De qualquer forma, rejeito a eterna discuss?o conservadores versus progressistas. ? simpl?ria. A crise atual ? primariamente uma crise de f?.
Veja – H? muitas cr?ticas em rela??o ? posi??o de Jo?o Paulo II quanto ?s chamadas quest?es morais, como aborto, uso de c?lulas-tronco e o div?rcio. O novo papa pretende adotar novas posturas com rela??o a essas quest?es?
Kasper – O aborto ? um crime contra o ser humano. A miss?o da Igreja n?o ? tornar o mundo mais desumano. A miss?o da Igreja ? oposta: humanizar. Os avan?os da ci?ncia e da modernidade s?o assuntos muito complexos. Alguns deles amea?am a dignidade da vida.
Veja – Mudar de posi??o em rela??o a esses temas n?o serviria para evitar a perda de fi?is para outras religi?es, como as evang?licas?
Kasper – N?o acho coerente conquistar fi?is se, para isso, ? necess?rio desumanizar as pessoas. Tamb?m n?o creio que haver? grandes mudan?as neste papado em rela??o a esses temas. O mundo atual se transforma muito rapidamente, de uma forma fren?tica. Discordo de que s? mudan?as s?o capazes de manter os fi?is. Para mantermos os cat?licos conosco, temos de mostrar justamente o contr?rio: que somos uma institui??o firme, s?lida, que n?o se deixa influenciar levianamente. Precisamos mostrar que temos princ?pios e que os seguimos.
Veja – Mas o senhor mostrou-se bastante progressista ao permitir a comunh?o para divorciados na Alemanha.
Kasper – A Igreja nunca deixa de discutir as quest?es morais que surgem no mundo. Os temas contempor?neos precisam ser analisados. O caso do div?rcio ? diferente. N?o est? relacionado diretamente ? vida humana, como o aborto e o uso das chamadas c?lulas-tronco.
Veja – J? ? poss?vel dizer em que o pontificado de Bento XVI ser? diferente do de Jo?o Paulo II?
Kasper – Houve conquistas ineg?veis no papado de Jo?o Paulo II, como a iniciativa do di?logo com outras religi?es, a preocupa??o extrema com os direitos humanos e com a modernidade de uma forma geral. Bento XVI n?o ir? abandonar a posi??o de seu antecessor diante dessas quest?es. O novo papa tamb?m n?o pode prescindir de usar os meios de comunica??o como um instrumento de propaga??o da f?. As inova?es de Jo?o Paulo II transformaram a Igreja Cat?lica numa refer?ncia ainda maior para todos os povos. Nunca um funeral de um papa reuniu tantos l?deres de tantos credos diferentes, pessoas de todas as idades e condi?es sociais. Claro que tudo isso se explica em parte pelo carisma pessoal de Jo?o Paulo II. Bento XVI ? diferente, muito mais reservado. Igualar-se a Jo?o Paulo II em popularidade ser?, sem d?vida, um de seus desafios.
Fonte: Veja