Palestra proferida por John Dominic Crossan, na Semana de Estudos de Religi?o da Universidade Metodista, dia 23/10
"No princ?pio havia a realiza??o, n?o apenas a palavra, nem apenas o ato, mas ambos, cada um marcado pelo outro para sempre."
John Dominic Crossan, O Jesus Hist?rico (1994), p. 11
O contexto ou matriz dentro do qual se reconstr?i o Jesus hist?rico e o Cristianismo das origens desenvolveu-se em tr?s camadas – com cada uma sempre incluindo sua antecessora – atrav?s de dois mil?nios de interpreta??o Crist?.
Num primeiro momento, Jesus s? era compreendido dentro e a partir do pr?prio Cristianismo, dentro do Testamento Novo como tamb?m na ora??o e medita??o crist?, lenda e tradi??o, arte e liturgia.
Em seguida, especialmente depois que a II Guerra Mundial for?ou n?o somente o respeito ecum?nico, mas tamb?m uma precis?o hist?rica entre o Cristianismo contempor?neo e o Juda?smo, essa matriz contextual foi ampliada para interpretar o Jesus hist?rico e o Cristianismo das origens dentro de Cristianismo, dentro do Juda?smo, especialmente para aquele traum?tico primeiro s?culo E.C.
Enfim, e especialmente ao t?rmino do s?culo XX e in?cio do s?culo XXI, o contexto amplo para o Jesus hist?rico e o Cristianismo das origens ? de enxerg?-los dentro do Cristianismo que est? dentro do Juda?smo que est? dentro do Imp?rio Romano.
Voc? notar? neste processo como o presente que reconstr?i sempre e necessariamente est? em tens?o dial?tica com o passado que ? reconstru?do. Isto, naturalmente, ? o porqu? da minha pr?pria defini??o grifada para hist?ria em "O Nascimento de Cristianismo", qual seja: “Hist?ria ? o passado reconstru?do interativamente pelo presente atrav?s daevid?ncia discutida no discurso p?blico (p?g. 20).
Dentro daquela matriz completa, o Jesus hist?rico e Cristianismo das origens n?o s?o sobre o Cristianismo contra o Juda?smo, mas sobre o Juda?smo Crist?o contra o imperialismo romano. E essa matriz mais completa muda tudo, totalmente.
Pr?logo
A import?ncia do lago de Tiber?ades
Tr?s quest?es guiam esta discuss?o. As primeiras duas s?o mais gerais. No in?cio do nosso livro escrito em parceria no ano de 2001 "Escavando Jesus: por baixo das pedras, por tr?s dos textos", Jonathan Reed e eu perguntamos no Pr?logo daquele livro: “Por que Jesus existiuquando ele existiu? Por que ent?o? Por que l?? Afie a pergunta um pouco. Por que dois movimentos populares, o movimento de Batismo de Jo?o e o movimento do Reino de Jesus existiram em territ?rios regidos por Herodes Antipas nos anos 20s do primeiro s?culo da Era Comum? Por que n?o em outro momento? Por que n?o em outro lugar?"
Eu acrescento outra pergunta mais espec?fica agora: Por que o Jesus ? achado t?o freq?entemente ao redor do Mar da Galil?ia, o Lago de Tiber?ades, o Lago com formato de harpa chamado Kineret? No par?grafo final do seu livro magn?fico "A Busca do Jesus Hist?rico", Albert Schweitzer diz de Jesus que: “Ele vem a n?s como um desconhecido, sem um nome, como vindo de tempos antigos, pela orla do lago, ele veio para as pessoas que n?o sabiam quem ele era.” ? quase descort?s interromper este pensamento e perguntar: o que Jesus estava fazendo “vindo de tempos antigos, pela orla”? Por que precisamente l?? Por que ent?o?
J? que Nazar? era a aldeia nativa de Jesus e ele sempre foi chamado o "Jesus de Nazar?", por que esta insist?ncia em Mateus 4,13: “Ele deixou Nazar? e foi morar em Cafarnaum, cidade mar?tima" ao lado do Mar ou Lago da Galil?ia? Ele n?o s? se mudou de uma aldeia muito pequena para uma um pouco maior, mas tamb?m de uma aldeia nas colinas para uma na beira de um lago. Ainda mais: os dois disc?pulos mais famosos de Jesus est?o intimamente conectados com as aldeias pesqueiras ? beira do lago. Primeira, Maria. Ela ? de Magdala, a cidade mais importante na regi?o do lago antes de Herodes Antipas ter constru?do Tiber?ades no ano 19 da Era Comum. O nome hebreu daquela cidade vem de migdal, torre,presumivelmente um farol. Seu nome grego, Tarichaeae, significa "peixe salgado". O outro, Pedro. Ele veio de uma aldeia pesqueira, Betsaida, assim como Felipe e Andr?, de acordo com Jo?o 1,14. Pedro parece ter-se mudado para a casa de sua esposa em Cafarnaum, quer dizer, de uma aldeia pesqueira para outra; porque ? a sogra dele que serve a Jesus naquela casa em Mc 1,31.
Al?m disso, os primeiros e a maioria dos membros mais importantes dos Doze, esses irm?os Pedro e Andr?, assim como os irm?osTiago e Jo?o, os filhos de Zebedeu, s?o todos chamados por Jesus para unir-se com ele ? medida que “passou pelo do Mar da Galil?ia” em Marcos 1,16. Todos os quatro s?o chamados desde seus barcos e redes pelo chamado de Jesus para que "sigam-me e eu os farei pescadores de gente". Para o evangelho de Marcos, em resumo, Jesus na Galil?ia raramente est? longe do lago, do barco e da rede e de peixe. Por qu??
Com essas tr?s perguntas, e especialmente aquela final, sempre presente, eu come?o com um panorama da matriz geogr?fica e hist?rica na qual Jesus viveu a vida dele. Eu uso o termo ?matriz? deliberadamente para evitar termo "pano de fundo" (background). Se voc? tira uma foto sua em est?dio e o computador do fot?grafo pode colocar voc? contra uma neve, floresta, prado, brecha ou cena de selva – isso ? "pano de fundo" (background). Est? l?, mas n?o tem nenhuma intera??o com voc? – voc? n?o estar? com frio na neve ou aquecido na praia. Por outro lado, uma matriz ? interativa e rec?proca, transforma voc? e voc? tamb?m a transforma. Por exemplo, o racismo sulista nos Estados Unidos era matriz e n?o s? o "pano de fundo" (background) para o Reverendo Martin Luther King Jr. Ent?o, aqui est? a matriz geogr?fica e hist?rica para Jo?o, o Batista, e Jesus, o "Cristo Jesus", nos territ?rios de Herodes Antipas nos anos 20 do s?culo I da Era Comum.
Parte I
Galil?ia e o Reino de Roma
O programa imperial de Romaniza??o pela urbaniza??o para comercializa??o golpeou violentamente a Galil?ia n?o sob Herodes, o Grande, na gera??o antes de Jo?o e Jesus, mas sob seu filho Herodes Antipas na gera??o de Jo?o e Jesus. E eu me volto agora para um olhar geral para a vida de Herodes Antipas antes de focar a aten??o na d?cada de 20s quando o movimento batista de Jo?o e o movimento de Reino de Jesus come?aram em Per?ia e na Galil?ia sob o governo de Antipas. Pense naquela vida como um drama de decep??o aguda estendendo-se por seis atos seguidos.
O primeiro ato aconteceu quando Herodes, o Grande, estava perto de morte. Seu testamento designou Antipas, seu herdeiro, ao trono como Rei dos judeus. Entretanto ele mudou de id?ia e designou o irm?o mais velho de Antipas, chamado Arquelau, como herdeiro para o t?tulo e o reino. Quando finalmente Herodes morreu em 4 antes da Era Comum (a.E.C.), Antipas e Arquelau se apresentaram diante de C?sar Augustus, em Roma, para pleitear seu caso em conflito. Os membros da fam?lia Herodiana preferiam o governo direto por um governador romano, mas falhando isto, eles apoiaram Antipas em vez de Arquelau. Por?m, Augustus chegou a meio termo com todo mundo. Ele deu metade do territ?rio judaico – Idum?ia, Jud?ia, e Samaria – para Herodes Arquelau, mas o intitulou "etnarca" (governador de um povo) e n?o um monarca. Ele dividiu o resto entre dois tetrarcas (governadores de uma das quatro partes – prov?ncias ou governos – em que se dividiam alguns estados) com Herodes ficando com a Galil?ia e Per?ia nos dois lados do Jord?o e Herodes Filipe ficando com a parte no extremo norte do pa?s. Antipas iniciou seu reinado muito desapontado.
O segundo ato come?ou imediatamente como, nas palavras de Fl?vio Josefo na sua obra "A Guerra judaica", “Herodes fortificouS?foris para ser o ornamento de toda a Galil?ia, e a chamou Autocratoris” (18.27). Autocrator ? a tradu??o grega comum para o latim Imperator, o primeiro t?tulo do Imperador C?sar Augustus e ? melhor traduzido para o ingl?s (e para o portugu?s) n?o como "Imperador", mas como "Conquistador do Mundo". ? claro que S?foris n?o chegava perto do n?vel do "status" dos projetos de constru??o de Herodes, o Grande, mas, ainda assim, Antipas come?ou o seu programa de Romaniza??o atrav?s da urbaniza??o para a comercializa??o quando ele dedicou sua cidade-capital reconstru?da para Augustus. Depois disso, ele ficou bem quieto enquanto Augustus viveu e talvez especialmente depois que Arquelau foi enviado ao ex?lio em 6 E.C. e um governador romano tomou o controle direto do territ?rio dele dentro na metade sul do pa?s. Lucas 13,32 sabiamente recorda isso ao manter a mem?ria de Jesus chamando Antipas de “raposa".
O terceiro ato come?ou em 14 E.C. quando Augustus morreu e Tib?rio se tornou o imperador. Nesse momento, Antipas fez o seu segundo movimento para se tornar o Rei dos judeus. Para substituir a sua antiga capital S?foris, ele come?ou a criar uma nova aproximadamente a 32 km para o leste na costa ocidental do Mar da Galil?ia. Ele a nomeou Tiber?ades em honra do imperador novo Tib?rio. Mas por que uma capital nova e por que l? e n?o em outro lugar? Antipas poderia ter renomeado S?foris como Tiber?ades e poderia ter constru?do, por exemplo, uma bas?lica nova maior para l? celebrar ascens?o de Tib?rio ao trono. Uma vez mais, ent?o, por que se constr?i uma nova capital e por que constru?-la l? ? beira do lago?
Pense um pouco. Se voc? fosse Antipas e quisesse se tornar o Rei dos judeus, voc? teria que aumentar sua base tribut?ria na Galil?ia de forma que Roma poderia lhe conceder aquela promo??o real. Se Antipas fizesse isto como tetrarca da Galil?ia e da Per?ia, Roma poderia pensar: o que n?o faria ele como monarca da p?tria judia inteira? Antipas n?o p?de impor mais tributa??o dos camponeses e pequenos agricultores sem arriscar o aparecimento de resist?ncia ou at? mesmo revolta. Mas, tendo aprendido como multiplicar p?es nos vales ao redor de S?foris, ele aprenderia agora a multiplicar peixes nas ?guas ao redor de Tiber?ades.
O quarto ato era o passo g?meo necess?rio para que o anterior funcionasse. Era o segundo passo de Antipas, interno ou caseiro, em dire??o ? realeza. Ele precisou de aprova??o romana, mas ele tamb?m precisou de aceita??o judia e para isso ele precisou forjar uma conex?o dos Herodianos com os Asmoneus. Os Asmoneus eram uma dinastia nativa que tinha regido a p?tria judia durante cem anos antes dos romanos chegarem ? metade do s?culo I a. E.C. e terem designado os Herodianos no lugar deles.Por exemplo, Herodes, o Grande, tinha escolhido a princesa asmon?ia, Marianne, primeiro como a sua rainha, mas depois a executou – justa ou injustamente? – por conspira??o contra ele. Antipas obteve sua consorte asmon?ia divorciando-se da sua esposa nabat?ia e casando com Herod?ades, esposa do pr?prio meio-irm?o Filipe e neta daquela Marianne assassinada.
O quinto ato era destinado a estabelecer Antipas como um grande ator no palco mundial das pol?ticas imperiais de alto n?vel. Quando o governador romano da S?ria encontrou o governante dos Partos, Artabano, para discutir rela?es de paz, Antipas ofereceu-lhes uma grande festa no rio Eufrates e imediatamente – mas estupidamente – conseguiu que seu relat?rio da reuni?o chegasse a Roma, antes do relat?rio do pr?prio governador.
O sexto ato deixou Antipas sem tempo. O irm?o de Herod?ades, Herodes Agripa I, cresceu em Roma como amigo de Cal?gula e, quando este se tornou imperador, ele nomeou Agripa I como Rei dos judeus, sendo entregue a ele toda a p?tria judia. Antipas e Herod?ades foram para Roma no ano 41 E.C discutir o assunto, agora contra Agripa I do mesmo jeito como antes contra Arquelau; mas em vez de se tornarem Rei e Rainha dos judeus, eles terminaram no ex?lio. Depois de 37 anos de paci?ncia e planejamento cuidadoso, para Antipas, tudo estava acabado.
A saga de Antipas, aquele que queria ser rei, concluiu-se uma d?cada depois do tempo de Jo?o Jesus, mas eu dei toda a informa??o para compreender aquele terceiro ato, quando ele fundou Tiber?ades para comercializar o lago e seus peixes em nome do imp?rio Romano e Jo?o e Jesus ambos se chocaram com ele em nome do Deus de Israel. Eu pe?o a voc?s agora que pensem uma vez mais naquele Barco da Galil?ia descrito no come?o deste cap?tulo.
Eu o tomo como um s?mbolo do que o processo de romaniza??o pela urbaniza??o para o com?rcio orquestrado por Antipas fez aos camponeses – pescadores comuns que utilizavam o lago antes que Tiber?ades fosse constru?da. Eles j? n?o podiam lan?ar suas redes livremente desde a praia. Eles j? n?o podiam possuir um barco ou trazer a pesca at? a praia, sem tributa??o. Eles provavelmente tiveram que vender o que eles pescavam para f?bricas de Antipas que secavam ou salgavam os peixes e faziam aquele molho/condimento de peixe execr?vel chamado garum (um tipo de condimento composto por sangue, v?sceras e de outras partes selecionadas do atum ou da cavala especialmente e misturadas com peixes pequenos, crust?ceos e moluscos esmagados; tudo isto era deixado em salmoura e ao sol durante cerca de dois meses ou ent?o aquecido artificialmente). Por isso, eu uso aquele barco para simbolizar os tempos mais duros nos anos 20 quando excelentes artes?os tiveram que trabalhar com parcos recursos e ainda sustentar seus os barcos o quanto fosse poss?vel. Como concluiu Wachsmann: “A Galil?ia neste momento estava economicamente quebrada; as madeiras usadas na constru??o dos barcos fossem talvez a express?o f?sica daquela situa??o econ?mica generalizada" (p?g. 358). Isso era a violenta normalidade da civiliza??o – no tempo dos romanos e na regi?o da Galil?ia. Eu me volto agora ? radicalidade de Deus em oposi??o a essa caricatura da normalidade.
Clique aqui para ler a segunda e ?ltima parte.