Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

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Sistema fiscal italiano financia confissões religiosas, mas legislação dificulta o acesso de várias denominações à verba recolhida compulsoriamente de seus devotos

Por Anelise Sanchez, de Roma, publicado na Revista Forbes, Ed. 159, 24 de agosto de 2007

STOCK XCHNG
Cúpula da Basílica de São Pedro, com seus 136 metros de altura
Até o dia 15 de junho, 58,7 milhões de contribuintes italianos prestaram contas ao governo, ao declarar o próprio IRPF (Imposto de Renda de Pessoas Físicas),uma das maiores fontes de arrecadação do Estado.Até aí,nenhuma novidade.O que muitos desconhecem, no entanto, é que, desde 1990, exatamente 0,8% do imposto sobre os rendimentos de cada cidadão italiano é destinado ao Estado ou a uma instituição religiosa.Trata-se de uma espécie de finaciamento público denominado otto per mille.

O sistema, criado na Itália em 1984 com a reforma do polêmico Concordato entre o Estado e a Santa Sé, foi regulamentado por uma instrução normativa de 1985 e posteriormente por sucessivos decretos e circulares. Na prática,cada contribuinte escolhe o beneficiário do próprio otto per mille entre sete instituições: Estado, Igreja Católica, valdismo e metodismo, adventismo, Assembléia de Deus,comunidade hebraica, Igreja Batista e Luterana. Um gigantesco patrimônio, considerando a soma distribuída em 2006,correspondente a mais de 963 milhões de euros, relativos à declaração de imposto de renda de três exercícios anteriores. Isso porque o otto per mille é rateado com base nas indicações feitas há três anos. É interessante destacar que, no mesmo ano,apenas 39,5% dos contribuintes demonstraram uma escolha, enquanto os outros 60,5% optaram pela omissão. Isso significa que, de acordo com a lei,a parcela daqueles que não indicaram sua preferência é redistribuída entre os sete beneficiários, com critérios que premiam a instituição que conquistou porcentualmente maior preferência. Do total de contribuintes que manifestaram sua posição,o Estado recebeu 8,38% das escolhas.

A Igreja Católica, por sua vez, conquistou 89,16% das preferências. Todas as outras instituições religiosas juntas acumularam apenas 2,46% das preferências.

Diante da grandiosidade dos recursos destinados à Igreja Católica, o que salta imediatamente aos olhos é um substancial desequilíbrio na distribuição dos recursos obtidos por meio do otto per mille.Mas como explicar esse fato?

No livro La politica del sacro - Laicità, religione, fondamentalismi nel mondo globalizzato (Editora Guerini Studio), Roberto Gritti, intelectual e professor de sociologia das relações e das organizações internacionais da Universidade de Roma "La Sapienza", sustenta que "a Constituição italiana designa para o Estado um perfil substancialmente laico, mas na praxe política todos os governos republicanos reconheceram à Igreja Católica um papel especial", e em seguida completa:" o sistema italiano é liberal porque garante liberdade religiosa, mas não igualitário porque privilegia a religião católica em detrimento das outras".

O catolicismo não é mais a religião oficial do Estado,mas na prática conquistou o status de religião nacional. Segundo os dados de uma pesquisa promovida em 2006 pelo Eurispes (Istituto di Studi Politici, Economici e Sociali), 87,8% dos italianos declararam- se católicos,mas só 36,8% deles são praticantes.

Assim, não é difícil entender por que a Conferência Episcopal Italiana (CEI) contrata a Saatchi & Saatchi, uma das maiores agências publicitárias do mundo, para fazer uma campanha com comoventes comerciais televisivos que unem, por exemplo, a música do premiado Enio Morricone com imagens do Terceiro Mundo.Vale lembrar que os fundos do otto per mille dirigidos à Igreja Católica são destinados a exigências de culto e pastorais, ações de caridade, suporte ao clero, tribunais eclesiásticos e contribuições às dioceses dos países em via de desenvolvimento.Em todo caso, em 2005 só 8% dos recursos do otto per mille à Igrega Católica foram encaminhados ao Terceiro Mundo.

Outro fato que merece destaque é a ausência de instituições religiosas minoritárias na repartição dos fundos. Em 2000, a União Budista Italiana (UBI) e a Congregação Cristã das Testemunhas de Jeová,que juntas contam em território nacional com cerca de 300 mil fiéis, assinaram um acordo para participar do programa otto per mille, mas até hoje a forte resistência do governo impediu que tal pacto fosse concretizado."As negociações estão estagnadas, e a cada troca de governo não há nada de novo", afirma Leopoldo Sentinelli, vice-presidente da UBI.

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Roberto Gritti, professor de sociologia:sistema italiano é liberal, mas não igualitário

Situação ainda mais delicada é atribuída aos muçulmanos.O islamismo é a segunda religião na Itália,com mais de 1 milhão de adeptos, mas até agora ainda não conseguiu o direito de participar do programa de repartição de rendas otto per mille.Entre 1990 e 1996,a União das Comunidades e Organizações Islâmicas na Itália (UCOII) apresentou três pedidos ao governo, mas mesmo reunindo as 112 associações islâmicas localizadas em solo nacional não foi considerada com representação suficiente. Isso porque outras associações também declaram- se representantes dos muçulmanos residentes na Itália."Poderíamos sugerir a destinação das verbas com base no grau de representatividade das associações islâmicas ? comenta Hamza R. Piccardo, secretário do UCOII ?, mas evidentemente isso exigiria do Estado uma decisão política."

Do mesmo modo, os ortodoxos também enfrentam uma batalha árdua. Silvano Livi, presidente da Associação dos Cristãos Ortodoxos na Itália, diz que "não é justo que os fiéis ortodoxos destinem o próprio otto per mille a uma outra religião".

E os benefícios fiscais em favor da Igreja Católica não se limitam apenas ao otto per mille.Desde 18 de agosto de 2005, com a promulgação de um decreto- lei assinado por Pietro Lunardi, ex-ministro da Infra-Estrutura e dos Transportes do governo Berlusconi, isentou-se o Vaticano do pagamento do imposto municipal de imóveis nos quais se exerça atividade de culto ou instrução, assistência e cultura.Considerando que,segundo o grupo Re,consultor do Vaticano, a Santa Sé detém 20% do patrimônio imobiliário nacional, a isenção impede as prefeituras italianas de arrecadar tributos que chegariam a 2 bilhões de euros ao ano.O cálculo foi realizado pela Ares (Agência de Pesquisa Econômico-Social).

Somente em Roma a Igreja Católica possui cerca de 7 mil imóveis,muitos dos quais resultado de legados e doações internacionais. No passado, grande parte de tais edifícios foi alugada a preços inferiores aos estabelecidos pelo mercado, pois estavam vinculados ao uso específico para fins de caridade. Entretanto, desde maio de 2005 a APSA (Administração do Patrimônio da Sede Apostólica) pretende renegociar os contratos com os "velhos" inquilinos. Sinal de que, como observa o professor Roberto Gritti, "a religião não é só expressão de uma fé individual, mas também é uma cultura, uma política".

 


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