Machado de Assis
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Riode Janeiro, 1994.
I – DE UMA ID?IA MIR?FICA
CONTA um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a id?ia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem cont?nuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde s?culos, sem organiza??o, sem regras, sem c?nones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obs?quios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que n?o teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religi?es, e destru?-las de uma vez.
– V?, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, brevi?rio contra brevi?rio. Terei a minha missa, com vinho e p?o ? farta, as minhas pr?dicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesi?stico. O meu credo ser? o n?cleo universal dos esp?ritos, a minha igreja uma tenda de Abra?o. E depois, enquanto as outras religi?es se combatem e se dividem, a minha igreja ser? ?nica; n?o acharei diante de mim, nem Maom?, nem Lutero. H? muitos modos de afirmar; h? s? um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabe?a e estendeu os bra?os, com um gesto magn?fico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a id?ia, e desafi?-lo; levantou os olhos, acesos de ?dio, ?speros de vingan?a, e disse consigo: – Vamos, ? tempo. E r?pido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as prov?ncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.
II – ENTRE DEUS E O DIABO
DEUS recolhia um anci?o, quando o Diabo chegou ao c?u. Os serafins que engrinaldavam o rec?m-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar ? entrada com os olhos no Senhor.
– Que me queres tu? perguntou este.
– N?o venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do s?culo e dos s?culos.
– Explica-te.
– Senhor, a explica??o ? f?cil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas c?taras e ala?des o recebam com os mais divinos coros…
– Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de do?ura.
– N?o, mas provavelmente ? dos ?ltimos que vir?o ter convosco. N?o tarda muito que o c?u fique semelhante a uma casa vazia, por causa do pre?o, que ? alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganiza??o, do meu reinado casual e advent?cio. ? tempo de obter a vit?ria final e completa. E ent?o vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me n?o acuseis de dissimula??o… Boa id?ia, n?o vos parece?
– Vieste diz?-la, n?o legitim?-la, advertiu o Senhor.
– Tendes raz?o, acudiu o Diabo; mas o amor-pr?prio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade ? que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exig?ncia… Senhor, des?o ? terra; vou lan?ar a minha pedra fundamental.
– Vai.
– Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
– N?o ? preciso; basta que me digas desde j? por que motivo, cansado h? tanto da tua desorganiza??o, s? agora pensaste em fundar uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de esc?rnio e triunfo. Tinha alguma id?ia cruel no esp?rito, algum reparo picante no alforje de mem?ria, qualquer cousa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao pr?prio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
– S? agora conclu? uma observa??o, come?ada desde alguns s?culos, e ? que as virtudes, filhas do c?u, s?o em grande n?mero compar?veis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algod?o. Ora, eu proponho-me a pux?-las por essa franja, e traz?-las todas para minha igreja; atr?s delas vir?o as de seda pura…
– Velho ret?rico! murmurou o Senhor.
– Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos p?s, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo p?, os len?os cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devo??o entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, – a indiferen?a, ao menos, – com que esse cavalheiro p?e em letras p?blicas os benef?cios que liberalmente espalha, – ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas mat?rias necess?rias ? vida… Mas n?o quero parecer que me detenho em coisas mi?das; n?o falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas prociss?es, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda… Vou a neg?cios mais altos…
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de s?plica. Deus interrompeu o Diabo.
– Tu ?s vulgar, que ? o pior que pode acontecer a um esp?rito da tua esp?cie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas est? dito e redito pelos moralistas do mundo. ? assunto gasto; e se n?o tens for?a, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor ? que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legi?es mostram no rosto os sinais vivos do t?dio que lhes d?s. Esse mesmo anci?o parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
– J? vos disse que n?o.
– Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufr?gio, ia salvar-se numa t?bua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam j? com a morte; deu-lhes a t?bua de salva??o e mergulhou na eternidade. Nenhum p?blico: a ?gua e o c?u por cima. Onde achas a? a franja de algod?o?
– Senhor, eu sou, como sabeis, o esp?rito que nega.
– Negas esta morte?
– Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, ? realmente aborrec?-los…
– Ret?rico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens… Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe sil?ncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o c?u com as harmonias de seus c?nticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
III – A BOA NOVA AOS HOMENS
UMA VEZ na terra, o Diabo n?o perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como h?bito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordin?ria, com uma voz que reboava nas entranhas do s?culo. Ele prometia aos seus disc?pulos e fi?is as del?cias da terra, todas as gl?rias, os deleites mais ?ntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a no??o que os homens tinham dele e desmentir as hist?rias que a seu respeito contavam as velhas
beatas.
– Sim, sou o Diabo, repetia ele; n?o o Diabo das noites sulf?reas, dos contos son?feros, terror das crian?as, mas o Diabo verdadeiro e ?nico, o pr?prio g?nio da natureza, a que se deu aquele nome para arred?-lo do cora??o dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos l?: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um trof?u e um l?baro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…
Era assim que falava, a princ?pio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multid?es ao p? de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um esp?rito de nega??o. Isso quanto ? subst?ncia, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras c?nica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substitu?das por outras, que eram as naturais e leg?timas. A soberba, a lux?ria, a pregui?a foram reabilitadas, e assim tamb?m a avareza, que declarou n?o ser mais do que a m?e da economia, com a diferen?a que a m?e era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na exist?ncia de Homero; sem o furor de Aquiles, n?o haveria a Il?ada: “Musa, canta a c?lera de Aquiles, filho de Peleu”… O mesmo disse da gula, que produziu as melhores p?ginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude t?o superior, que ningu?m se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas raz?es de ordem liter?ria ou hist?rica, para s? mostrar o valor intr?nseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande c?pia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, express?o metaf?rica, pela vinha do Diabo, locu??o direta e verdadeira, pois n?o faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto ? inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao pr?prio talento.
As turbas corriam atr?s dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloq??ncia, toda a nova ordem de cousas, trocando a no??o delas, fazendo amar as perversas e detestar as s?s.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a defini??o que ele dava da fraude. Chamava-lhe o bra?o esquerdo do homem; o bra?o direito era a for?a; e conclu?a: muitos homens s?o canhotos, eis tudo. Ora, ele n?o exigia que todos fossem canhotos; n?o era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que n?o fossem nada. A demonstra??o, por?m, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casu?sta do tempo chegou a confessar que era um monumento de l?gica. A venalidade, disse o Diabo, era o exerc?cio de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chap?u, cousas que s?o tuas por uma raz?o jur?dica e legal, mas que, em todo caso, est?o fora de ti, como ? que n?o podes vender a tua opini?o, o teu voto, a tua palavra, a tua f?, cousas que s?o mais do que tuas, porque s?o a tua pr?pria consci?ncia, isto ?, tu mesmo? Neg?-lo ? cair no absurdo e no contradit?rio. Pois n?o h? mulheres que vendem os cabelos? n?o pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem an?mico? e o sangue e os cabelos, partes f?sicas, ter?o um privil?gio que se nega ao car?ter, ? por??o moral do homem? Demonstrando assim o princ?pio, o Diabo n?o se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuni?ria; depois, mostrou ainda que, ? vista do preconceito social, conviria dissimular o exerc?cio de um direito t?o leg?timo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto ?, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Est? claro que combateu o perd?o das inj?rias e outras m?ximas de brandura e cordialidade. N?o proibiu formalmente a cal?nia gratuita, mas induziu a exerc?-la mediante retribui??o, ou pecuni?ria, ou de outra esp?cie; nos casos, por?m, em que ela fosse uma expans?o imperiosa da for?a imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum sal?rio, pois equivalia a fazer pagar a transpira??o. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos poss?veis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a ?nica exce??o do interesse. Mas essa mesma exce??o foi logo eliminada, pela considera??o de que o interesse, convertendo o respeito em simples adula??o, era este o sentimento aplicado e n?o aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do pr?ximo era um obst?culo grave ? nova institui??o. Ele mostrou que essa regra era uma simples inven??o de parasitas e negociantes insolv?veis; n?o se devia dar ao pr?ximo sen?o indiferen?a; em alguns casos, ?dio ou desprezo. Chegou mesmo ? demonstra??o de que a no??o de pr?ximo era errada, e citava esta frase de um padre de N?poles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo reg?men: “Leve a breca o pr?ximo! N?o h? pr?ximo!” A ?nica hip?tese em que ele permitia amar ao pr?ximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa esp?cie de amor tinha a particularidade de n?o ser outra cousa mais do que o amor do indiv?duo a si mesmo. E como alguns disc?pulos achassem que uma tal explica??o, por metaf?sica, escapava ? compreens?o das turbas, o Diabo recorreu a um ap?logo: – Cem pessoas tomam a?es de um banco, para as opera?es comuns; mas cada acionista n?o cuida realmente sen?o nos seus dividendos: ? o que acontece aos ad?lteros. Este ap?logo foi inclu?do no livro da sabedoria.
IV – FRANJAS E FRANJAS
A PREVIS?O do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algod?o, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa ?s urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atr?s foram chegando as outras, e o tempo aben?oou a institui??o. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; n?o havia uma regi?o do globo que n?o a conhecesse, uma l?ngua que n?o a traduzisse, uma ra?a que n?o a amasse. O Diabo al?ou brados de triunfo.
Um dia, por?m, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fi?is, ?s escondidas, praticavam as antigas virtudes. N?o as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, ?s ocultas. Certos glut?es recolhiam-se a comer frugalmente tr?s ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito cat?lico; muitos avaros davam esmolas, ? noite, ou nas ruas mal povoadas; v?rios dilapidadores do er?rio restitu?am-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o cora??o nas m?os, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam emba?ando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram at? incompreens?veis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma gera??o inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das v?timas. No Cairo achou um perfeito ladr?o de camelos, que tapava a cara para ir ?s mesquitas. O Diabo deu com ele ? entrada de uma, lan?ou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, ? vista do Diabo e foi d?-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Al?. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordin?rias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores ap?stolos era um calabr?s, var?o de cinq?enta anos, insigne falsificador de documentos, que possu?a uma bela casa na campanha romana, telas, est?tuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para n?o confessar que estava s?o. Pois esse homem, n?o s? n?o furtava ao jogo, como ainda dava gratifica?es aos criados. Tendo angariado a amizade de um c?nego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solit?ria; e, conquanto n?o lhe desvendasse nenhuma das suas a?es secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal p?de crer tamanha aleivosia. Mas n?o havia duvidar; o caso era verdadeiro.
N?o se deteve um instante. O pasmo n?o lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espet?culo presente alguma cousa an?loga ao passado. Voou de novo ao c?u, tr?mulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de t?o singular fen?meno. Deus ouviu-o com infinita complac?ncia; n?o o interrompeu, n?o o repreendeu, n?o triunfou, sequer, daquela agonia sat?nica.
P?s os olhos nele, e disse:
– Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algod?o t?m agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algod?o. Que queres tu? ? a eterna contradi??o humana.