Publicado por Comunicação em Escola Dominical - 11/09/2024

Um estudo sobre o suicídio

AÇÕES PASTORAIS DIANTE DO SUICÍDIO E FAMÍLIAS SOBREVIVENTES

Autoria: Rev. Jeremias Ribeiro, 4RE

 

Um pouco de história

A memória mais antiga que guardo comigo foi de um matricídio seguido de um suicídio. A minha pequena cidade, Pinheiro-MA, foi tomada de um sentimento avassalador e traumático. Quando perguntei para minha mãe, anos mais tarde, ela ficou surpreendida com a minha descrição do ocorrido, eu tinha entre 3 e 4 anos. Relembro que a cidade ficou um caos, pessoas corriam de um lado para o outro, choro, pavor, incredulidade e revolta se via entre os vizinhos, amigos e familiares. Aquela senhora momento antes parou para conversar com mamãe. Trocaram ideias sobre remédios caseiros e eu ali ouvindo tudo. Instantes depois, a notícia se espalhou como fogo em pasto seco, seu filho matou-a e em seguida tirou a própria vida.

Ela foi velada na capela do bairro, o filho suicida e matricida, não. Ambos foram sepultados em horários diferentes. Os cortejos obedeceram a igual rito. Esta é uma saga com a qual lido desde tenra idade, até o momento presente em minha prática pastoral. Mudam os personagens, mas os sentimentos ainda perduram quando nos deparamos com o autoextermínio de uma pessoa: raiva, revolta, discriminação do suicida, exclusão de um ato fúnebre digno, julgamento desmedido de amigos e famílias desterradas pelo ato de seu ente querido.

O suicídio

O suicídio é um ato que alguns julgam ser fraqueza, falta de vergonha, falta de Deus, incapacidade da família de cuidar de seu ente querido ou possessão demoníaca. Popularmente, as opiniões ou julgamentos são sempre depreciativos e carregados de um peso moralista. Não vamos tratar aqui sobre o tema da salvação, para não correr o risco de julgamentos e porque o nosso propósito é a prevenção e apoio às famílias. Entretanto, o autoextermínio entra na discussão religiosa, da filosofia moral ou existencial ao longo da nossa jornada humana.

O Suicida

Quem foi o suicida em vida? Ele foi alguém amado e amável no seu núcleo familiar?  Foi um filho? Um pai ou mãe?  Um sobrinho? Uma tia? Um neto? Fora deste ambiente familiar ele foi um amigo da escola? Um companheiro de trabalho? Um excelente funcionário da empresa? Um sorridente homem de negócios? Um colega de ministério pastoral?

Com as indagações acima, desejamos explicitar que o suicida não era um monstro ou alguém desalmado. Era uma pessoa/um ser/um semelhante que mantinha uma relação viva no seu meio familiar e social.  Por ter dado fim à sua existência de forma traumática e devastadora para nós que ficamos – os sobreviventes – não faz dele alguém a ser esquecido e não ter memória entre nós. Esse é outro ponto a ser dito: aniquilamos o suicida e dele nada mais contamos, qualquer vestígio de sua existência é apagado. Se torna vulto, que sempre se presentifica em novos suicídios ou tentativas na vida familiar.

A elaboração de uma ação pastoral frente ao suicídio

Disse acima que desde muito cedo me deparei com esta realidade do suicídio. Hoje não tenho mais os números exatos de famílias, quer cristãs metodistas ou não, que já acompanhei e acompanho, de tentativas ou autoextermínio de seus membros. Realizei muitos acompanhamentos em grandes, médias e pequenas cidades por onde passei, pastoreando. O suicídio acontece nas mais variadas famílias. Não existe classe social que não é alcançada pelo suicídio.

Em todas estas localidades encontramos uma comunidade de fé e seu pastor envoltos com temas viscerais. A vida ministerial se entrelaça com a vida e a morte; alegrias e tristezas; eterno e efêmero; amor e ódio; perdão e pecado; devassidão e santidade. Realidades que não polarizam entre si, estão entrelaçadas no humano que somos e disto devemos nos ocupar sem satanizar os nossos sentimentos.

Se pastor e comunidade se encontram neste espaço vivo e de muitos desafios existenciais, podemos olhar serenamente e com fé na graça de Deus que juntos poderemos auxiliar-nos nestes instantes agudos. Deixo aqui alguns pontos em destaque para nossa prática pastoral local, segue:

  1. Reconhecer que o suicida está entre nós

“Quando o caos chegar, alguém deve saber a direção do farol.”

Ana Cláudia Quintana, Médica e Paliativista

Por mais difícil que seja assumir esta verdade, é tendo-a como farol que poderemos agir no auxílio aos membros e amigos que possuem tendência suicida. Negar este fato, é acreditar que um problema tão grave como este se resolverá por si só. Devemos nos lembrar que o suicida pode dar sinais dúbios em forma de comportamento, pode verbalizar sua intenção ou esconder até o final. Uma tentativa ou caso de suicídio em uma família não pode ser considerado caso isolado. Para algumas famílias, infelizmente, o suicídio faz parte de sua dinâmica psíquica de resolução de problemas com a dor oriunda de diversas fontes, até mesmo a depressão. Neste sentido, o suicídio ou sua tentativa é um sintoma que deve ser considerado seriamente por nós e familiares envolvidos neste drama.

  1. Acolher sem julgar alguém com tendência suicida

"Não julguem, para que vocês não sejam julgados. Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para medir vocês.” Mateus 7.1-2

A cultura religiosa julga muito as pessoas, ela se pauta entre o Certo X Errado, Deus x Diabo ou Pecado x Salvação. O juízo moral de membros ou pastores da igreja (expostos em sermões ou casos vivenciados na comunidade sobre suicídio) é uma barreira a ser vencida. Um membro ou pastor da igreja tentado ao autoextermínio não se sentirá confortável para expressar este intento. Com certeza, a sua dor e agonia progressivamente o empurrarão para o suicídio.

Acolher sem julgar uma pessoa que vê no suicídio a saída para seus dilemas existenciais, é algo que não tem preço. Quando a pessoa vem buscar ajuda, acreditamos que ela queira uma reposta nossa ou direcionamento de seus passos. Em primeiro lugar, ela quer ser ouvida e acolhida nesse desespero interior. Segundo, deseja encontrar um lugar confiável para expressar essa dor e terceiro, apoio quando solicitado no sentido da ajuda profissional.

  1. Apoiar efetivamente junto aos profissionais da saúde mental

“”...mas quando nos apoiamos nos recursos oferecidos pelos outros que estão ao nosso redor, descobriremos que não estamos sozinhos em nossa tristeza.”

Albert Hsu

Quando uma pessoa compartilha na comunidade que tem um diagnóstico positivo para o câncer, abraçamos este irmão e auxiliamos em seu tratamento com recursos pastorais, espirituais, financeiros e acompanhamos até o local do tratamento.  Lamentavelmente, não é assim que auxiliamos alguém diagnosticado com depressão e tendência suicida. Ofertamos saídas fáceis e descomprometidas com a realidade desafiadora ao nosso modo de pensar e agir nesta matéria. Como agentes pastorais, igreja e pastor, devemos acompanhar este alguém que ao consultar o psiquiatra ou psicólogo, depois de medicado, o sendo necessário para contenção dos impulsos destrutivos. Também, prover recursos financeiros para chegar a estes profissionais que saberão conduzir o caso. Por experiência nas comunidades de fé, eu sei que muitas famílias não estão preparadas financeiramente para pagar o tratamento, que é longo e cheio de altos e baixos.

Infelizmente, a comunidade religiosa brasileira vê com maus olhos os profissionais da psiquiatria e psicologia. Dizemos que estes profissionais são para os loucos e que não estamos nessa categoria de pessoas. Há quem diga: “Eu não preciso disso, meu psiquiatra ou psicólogo é Jesus”, “isso é falta de fé ou oração”, “Está assim por fraqueza espiritual”, “se tivesse aos pés de Jesus, nada disso estaria acontecendo”. Para prestar ajuda efetiva aos nossos membros adoecidos pela depressão ou traumas que podem os levar ao suicídio, é importante vencermos os preconceitos.

  1. Escutemos a família do potencial suicida

“Aquele que olha para o dedo que aponta para as estrelas, não olhará as estrelas.” Adalberto Barreto, Terapeuta de Família

A família de um potencial suicida deve ser acolhida e ouvida sobre sua história no campo das doenças psíquicas e do autoextermínio. Os membros mais antigos, por vezes, guardam informações dos antepassados mais distantes, e sabem da causa morte de alguém que não fora de causa natural.  Isso elucida a dor do suicídio e seu trauma devastador na vida presente da nova geração. Ou seja, o suicídio passa de geração para geração. Devemos tratar claramente com a família e seu ente tendente ao suicídio sobre o assunto.

Segundo o terapeuta, Adalberto Barreto, não devemos ficar presos no sintoma, é preciso ir além do mesmo.

  1. O sucesso não é garantido
  2. Finalmente, fortaleçam-se no Senhor e no seu forte poder.”
    Ef 6:10

O trabalho com famílias de pessoas com tendências suicidas não logrará como fim, por vezes, o sucesso. Não está debaixo da nossa vontade ou poder evitar este tipo de morte traumática. Este é um realismo com o qual devemos nos confrontar, só o suicida pode evitar seu fim drástico.

 A igreja e seus membros vão apoiar com visitas, fazer uma sustentação com atos de vida, auxiliar no tratamento psiquiátrico, medicamentoso e psicológico. Entretanto, a decisão será sempre do paciente. Isto é muito doloroso, contudo, é a verdade. Se não tivermos isto em mente, nos sentiremos traídos e raivosos por não evitarmos a morte dessa pessoa querida.

  1. Tratar com seriedade a dor na comunidade de fé

“Irmãos, não queremos que vocês desconheçam as tribulações que sofremos na província da Ásia, as quais foram muito além da nossa capacidade de suportar, a ponto de perdermos a esperança da própria vida.” II Cor 1:8

Alguns estudiosos deduzem que estamos na sociedade do mais gozar ou mais prazer, um caldo narcisista e hedonista constitui o modo de ser das pessoas consigo e nas relações umas com as outras.  

Como resultado, a dor passa ser ignorada e inadmissível. O culto ao gozo ou prazer tomou conta dos espaços seculares e religiosos na pós-modernidade. As igrejas e suas relações com o sagrado foram atingidas pelo espírito deste tempo, suas celebrações exaltam o gozo, o prazer e pouco falamos do sofrimento nosso de cada dia.

O culto deixou seu aspecto de adoração ao Senhor da vida em sua inteireza ou de forma integral, seletivamente elegemos os temas que corroborem para visão da exclusão do sofrimento humano. Sofrimento tão íntimo dos nossos pais na fé nas mãos da tirania romana.

Por fim,

O trabalho pastoral deve partir da compreensão que o suicídio é um comportamento humano de complexa explicação, que sua causa não pode ser interpretada de maneira simplista. Muitos fatores conscientes ou não se entrelaçam em seu desfecho final.

Acompanhar uma família e a igreja que pertenciam um suicida, é uma tarefa pastoral desafiadora. Negar que aquela pessoa não era membro ou que ali congregava, é mais fácil. Imaginemos se este alguém é o próprio pastor da igreja, que diríamos? Qual seria a posição adotada pelos membros e liderança maior de uma dada denominação?

Martinho Lutero entendia que a teologia é antes de tudo, pastoral, não a punha em um campo especulativo filosófico. Na sua interpretação, a teologia deve se ocupar com o cuidado do ser humano. Ele mesmo, segundo o filme Lutero, foi confrontado pelo suicídio de um adolescente em sua paróquia. Tomado pelo zelo do pastor, do que cuida do rebanho, deu ao suicida um lugar no Campo Santo. Sob protestos de seus paroquianos, entendeu que a misericórdia de Deus não abandonou aquele filho que açoitado pelo desespero, retirou sua própria vida.

Só pelo cuidado amoroso pastoral, chegaremos perto e ao lado de quem acredita que a morte seja a melhor saída para sua dor ou traumas que nos são desconhecidos!  

 

Autoria: Rev. Jeremias Ribeiro, 4RE, psicanalista, terapeuta de família e casais.

facebook.com/jeremias.ribeiro1 revjeremiasribeiro@gmail.com

____________________________

INDICAÇÃO DE LEITURAS

CECÍLIA VELUK, M.; ROSANE CARNEIRO, P. Desafios da Clínica em Terapia Familiar. [s.l.] Appris Editora, 2023.

Albert Hsu. Superando a dor do suicídio. Guarulhos: Editora Vida, 2003.

D’ASSUNÇÃO, Evaldo A. Luto: Como viver para superá-lo. Petrópolis: Vozes, 2018.

D’ASSUNÇÃO, Evaldo A. Sobre o viver e o morrer: Manual de Tanatologia e Biotanatologia para os que partem e os que ficam. Petrópolis: Vozes, 2011.

ASHTON, J.; AUGUSTO, S. Vida Após Suicídio: Encontrando coragem, conforto e acolhimento após a perda de uma pessoa querida. São Paulo: nVersos Editora, 2020.

Chbosky, S. (2012). As Vantagens de Ser Invisível (filme). Summit Entertainment.

Til, E. (2003). Lutero (filme). MGM.


Posts relacionados