Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

GRACE

CADA VEZ mais penso que o temperamento determina o pensamento, e não o contrário. Explico-me: quando lemos um autor ou um livro, ou ouvimos uma ideia que nos parece verdadeira, não é nosso intelecto que responde ao estímulo, concordando ou discordando, mas nosso temperamento é quem julga e aceita ou recusa. Em outras palavras: confio mais no coração e no fígado do que no cérebro.

Muitas vezes dizemos que defendemos uma determinada ideia porque ela nos parece mais justa ou porque uma santa revolta nos guia em nossa atitude. Eu, cá com meus botões, acho que a causa primeira de nossa defesa desta ou daquela ideia é da mesma ordem do gosto ou da mania, como acordar cedo ou tarde, apreciar ou não comida baiana, gostar ou não de festas, ter ou não medo de avião, sei lá. A contínua indisposição física ou psíquica, parodiando o grande poeta português Fernando Pessoa (século 20), faz de nós metafísicos, e não o contrário.

Às vezes, pra mim, um sorriso de uma mulher bonita numa manhã qualquer determina minha aceitação do mundo, enquanto que uma alma azeda me torna um cético contumaz. Minhas ideias são como que escravas de um gesto doce ou de um corpo belo. Por temperamento sou um descrente, por sorte não sou um niilista: o mundo sempre me salva de mim mesmo. A fé (em qualquer coisa) não é uma experiência comum em minha vida. Muitas pessoas julgam a vida impossível sem a fé. Acho que elas se enganam: a coragem e a gratidão são muito mais importantes do que a fé.

Tenho um entendimento peculiar de Deus: para mim, Ele pede mais coragem e gratidão do que fé. Mesmo nas narrativas do chamado Velho Testamento, como diz o crítico Erich Auerbach (século 20) em seus "Mímesis", não me parece que a fé seja uma questão essencial na relação entre o Deus de Israel e seus heróis, mas sim a capacidade de suportar o dia-a-dia, com seus ventos e sua poeira, de ser dobrado e amassado, e ainda assim, comer e beber com gosto, estar com a mulher amada, compartilhar as alegrias efêmeras.

O problema com a fé, pelo menos em grande parte, é que ela se abre para críticas como a de Nietzsche (século 19): como diz, mais ou menos, o nosso filósofo do martelo, a fé desenha um mundo invisível e perfeito no além, como numa espécie de surto de metafísica para pobres, em troca de uma recusa da vida na sua nudez dilacerada, na sua elegante ferocidade. A beleza que nos cabe, penso (seguindo o filósofo do martelo), é a que caminha sobre ossos.

Outra coisa que me aborrece na fé é sua inveterada vocação para a busca de retribuição final: sendo bom, mereço receber a felicidade em troca. A lógica da retribuição atrapalha a psicologia da gratidão porque faz de nós uns interesseiros. A possibilidade de vermos a gratidão só existe se soubermos de antemão que não fizemos nada (ou pouco fizemos) por merecer o bem que recebemos.

Isso em nada anula nosso pequeno valor, apenas nos poupa da mesquinhez, nos devolve a visão daqueles que tornam nossa alegria um fato. O cineasta Lars Von Trier trabalhou esta questão da gratidão, e nossa inaptidão para ela, de forma brilhante em seu filme "Dogville".

Lembremos da questão de abertura do drama: o "filósofo" Thomas Edison Jr. (filho do inventor da luz elétrica?) organiza uma discussão filosófica com os moradores da pequena Dogville. Sua intenção é compreender a razão dos moradores daquela cidade serem incapazes de receber presentes e dádivas. Enquanto isso, uma jovem, bela e carinhosa mulher (Nicole Kidman) chega à cidade. Seu nome é Grace (Graça). A forma canalha com a qual ela será tratada, inclusive pelo jovem filósofo (eles fazem dela uma escrava), merecerá o castigo vindo pelas mãos do pai da bela Grace.

Estava eu voltando de um desses congressos, de saco cheio devido aos irritantes atrasos dos voos, quando, de repente, ao entrar no avião, ouço o "bom dia" de uma bela comissária. "Tomara que o voo esteja vazio, assim você terá mais espaço", diz ela sorrindo. Acostumado com a simpatia vazia desses funcionários da aviação, logo me espantei diante daquele rosto.

"O que você veio fazer em Curitiba?" Respondo seco: congresso. "Professor? Eu estudei história, mas abandonei e agora estou fazendo um curso de história à distância." Três filhos: 18, 12 e 1 ano. Dez horas de voo por dia. Dei sorte: entre uma Pepsi Cola miserável e um biscoito sem gosto, fui visitado pela beleza em um voo de 40 minutos.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.


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