Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

o vício do bingo

O PAÍS EM JOGO

Por Carlos Bezerra Jr.

Folha de S.Paulo, seção Tendências e Debates, 14/05

Toda vez em que participo de debates sobre assuntos como redução da maioridade penal, desarmamento, e, agora, legalização dos bingos, me pergunto: que país nós queremos? Ao ler o artigo do ex-secretário estadual de Segurança Marco Vinício Petrelluzzi, Jogos de Azar e Segurança Pública, publicado sexta-feira dia 4 neste espaço, pensei sobre o quanto as crises sociais que enfrentamos têm estreitado a nossa visão em vez de nos dar oportunidade para tornarmos o país mais justo.

Há dois anos, a Câmara de São Paulo aprovou um projeto de minha autoria, sancionado pelo então prefeito José Serra, que obrigava as casas de bingo a colocar placas alertando sobre o risco do vício no jogo. Na época, os donos de bingos alardearam o benefício da iniciativa, lépidos em legalizar na marra o seu negócio milionário. A verdade, porém, é que aquilo era tudo o que eu poderia fazer como vereador, e era também uma tentativa de puxar a discussão, urgente, para o campo certo, o da saúde pública.

"A prática do jogo pode viciar e provocar problemas emocionais e financeiros", diz a frase inscrita na placa obrigatória na porta dos estabelecimentos. O bingo como opção de lazer não é o que existe aí. A divertida tômbola é o que se praticava em quermesses. Nos megacassinos que se espalham pelo país como praga, o que se vê é uma máquina feita para criar dependência inferior só ao cigarro, da decoração ao software que escolhe os números.

Instituições como a Universidade Federal de São Paulo e Universidade de São Paulo criaram laboratórios para atender a população viciada. Da segunda, pesquisa do Ambulatório do Jogo Compulsivo (Amjo) constatou que a síndrome de abstinência do jogador chega a ser pior do que a do alcoólatra. Foi nesses locais e na organização Jogadores Anônimos (J.A.) onde aprendi que jogar na loteria é uma coisa, jogar em bingo e nas máquinas de caça-níquel, é outra completamente diferente.

Quando o resultado da aposta é rápido, como no segundo caso, a dependência é mais fácil de ser desenvolvida, assim como o cigarro é a forma mais veloz de levar nicotina ao cérebro. Pesquisas sobre como ganhar e perder dinheiro mexem com nosso humor e não param de surgir. Recentemente, cientistas da University College, de Londres, constataram que ao perder dinheiro ativamos a mesma região do cérebro usada para identificar medo e dor. Imaginem, então, o que se produz na cabeça do jogador de caça-níqueis? Para o J.A., essas máquinas são o crack da jogatina. De cada dez pessoas que procuram apoio na entidade, quatro são viciadas nelas.

Fui testemunha da destruição que o bingo provoca. Há estabelecimentos onde o jogador entra de carro e sai a pé. Conheci um senhor que, não bastasse perder o carro, jogou o dinheiro que usaria para pagar a condução. Outros chegam a roubar parentes para jogar. Há um tempo, os jornais noticiaram a história da esposa de um dekassegui do Paraná que jogava todo o dinheiro que o marido enviava do Japão. Na semana em que ele retornaria ao Brasil, ela se matou. Ao observar atentamente os bingos da cidade, vemos que quem está ali é aquele cidadão de classe média baixa que aposta nas máquinas para realizar sonhos que o salário não realiza. Há também muitos aposentados.

Quem em sã consciência consegue ver a fila na porta de alguns estabelecimentos, no início da tarde de um dia de semana, e continua acreditando que aquelas pessoas estão ali para apenas se divertir? Só os proprietários de bingos, que usam de argumentos espúrios para manter os lucros, uma fortuna que serve para comprar sentenças judiciais, como revelaram as operações da Polícia Federal Hurricane e Têmis, e que financiam campanhas como descortinou o caso Waldomiro Diniz. Alguma autoridade pública acredita, realmente, que vamos manter sob controle os bingos do país diante desse currículo?

Ah, mas existe Las Vegas, um conjunto de cassinos freqüentados por turistas cravado no meio do deserto justamente para isolar a jogatina do dia-a-dia da população. E mesmo que os Estados Unidos, onde parte considerável da população tem dinheiro para gastar e aplicar na bolsa, por exemplo, fossem habitados por viciados em jogo, deveríamos imitá-los por quê? Há quem use a desculpa de que bingos geram emprego. O tráfico de drogas também gera.

O pior argumento, porém, é o da corrupção que surge da repressão. Do tipo: proibir é pior. Sob esse prisma, os juízes acusados de vender sentenças são, na verdade, vítimas de um sistema cruel. Pensar assim é fazer como o marido que flagrou a mulher com outro no sofá e culpou o estofado.

Já liberamos as armas, estamos em vias de reduzir a maioridade penal e corremos o risco de legalizar os bingos. O que de melhor ainda temos para fazer por essa população que precisa de segurança, sim, mas necessita também parar de ser enganada por máquinas e por homens? Tivesse o tráfico de drogas lobby tão eficiente, o crack estaria legalizado.

CARLOS BEZERRA JÚNIOR, 39 anos, é médico, vereador e líder do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo.


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