Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

JÜrgen Moltmann

 Uma teologia para a vida - uma vida para a teologia

 

                Por meio desta conferência, desejo expressar minha gratidão pela honra que esta  Universidade me concede. Quero apresentar algo biográfico de modo teológico e algo teológico de modo biográfico. Com isso, direi o que a teologia significa para mim e porque eu dediquei-lhe toda a minha vida.

                Em minha juventude, fui salvo pela esperança de Cristo. Ele a plenificou até hoje com a energia do Espírito divino. Ele me permite saudar todas as ma­nhãs em que me é dado viver, com a alegria adventícia da vinda de Deus.

                O futuro de Deus sempre me fascinou, pois ele é o "lugar espaçoso" da liberdade.

Cristo veio, Cristo está presente, Cristo virá. Isto significa para mim: Você será livre, você é livre e "no fim, será definitivamente liberto", como diz o spiritual escrito na lápide de Martin Luther King, assassinado em 4 de abril de 1968.

 

No fim - o começo

                O começo de minha busca teológica por Deus coincidiu com o fim pavoroso de minha cidade natal, Hamburgo, em 1943. Pode-se dizer que sou um sobrevivente de "Sodoma e Gomorra". Essa menção não tem nada a ver com poesia religiosa, mas com uma realidade dolorosa. Quando essa lembrança me vem à mente, me assaltam temor e tremor.

                Eu venho de uma família secular de professores e educadores oriundos de Hamburgo. Teologia e religião estiveram sempre distantes de mim. Eu dese­java estudar Física ou Matemática. Por isso, os heróis de minha juventude foram Albert Einstein e Max Planck. Ao completar dezesseis anos de idade, tendo acabado de ler o livro de Louis Broglies "Luz e matéria", com prefácio de Werner Heinsenberg, fui designado, com os meus colegas de classe, para uma bateria antiaérea no centro de Hamburgo. Nas últimas semanas de julho de 1943, aquela cidade foi destruída pelo fogo provocado por "Sodoma e Gomorra", nome dado à operação de bombardeio da força aérea britânica. A bomba que esfacelou um de meus colegas, ao meu lado, me poupou de modo indescritível. Naquela noite de morte em massa, eu gritei pela primeira vez por Deus: 'Meu Deus, onde tu estás? Onde está Deus?'

                Durante três anos como prisioneiro de guerra na Escócia e na Inglaterra, procurei uma resposta. Em todas as noites, travei uma batalha com Deus como Jacó, que lutou contra o Anjo do Senhor no Vau de Jaboque. Tratou-se de uma luta contra o lado mais obscuro de Deus, contra sua face abscôndita, contra o "não" de Deus que nós tivemos que suportar durante a guerra e na miséria do tempo de prisão. Nós escapamos da morte no conflito, mas para cada um que sobreviveu houve centenas que morreram. Nós escapamos do inferno, mas pusemo-nos atrás do arame farpado e perdemos a esperança.

                Fomos empurrados para a guerra com os lindos poemas alemães de Gõethe e Schiller, com elevados ideais da filosofia alemã. Mas, na miséria dos campos de prisioneiros, perdemos o encanto por essas coisas. O meu mundo interior de­sabou. Eu recolhi meu coração que sangrava dentro de uma carapaça de imperturbabilidade e apatia. Isso foi uma forma de prisão interna para a alma, somada à prisão externa. Uma pessoa pode se tornar tão apática e indiferente que não é mais capaz de sentir nada: nem alegria, nem dor. Então não se vive mais, torna-se como que um morto-vivo.

                A mudança desse estado para um novo começo aconteceu na minha vida por meio de três coisas: uma cerejeira florescente, uma amizade inesperada com os trabalhadores escoceses e suas famílias e por meio da Bíblia.

                Em maio de 1945, tivemos que empurrar um veículo no miserável campo de prisioneiros da Bélgica. Eu o fiz calado e sem a menor vontade. De repente, notei que estava entre lindas cerejeiras florescentes. A vida plena "olhou" para mim. Eu caí, quase inconsciente, mas senti a primeira centelha de vida novamen­te em mim.

                Na Escócia, trabalhamos na construção de ruas junto com o povo nativo. Eles nos chamavam pelo nome mesmo que nós trouxéssemos em nossas costas apenas números. Eles trataram seus antigos inimigos com uma hospitalidade tão natural, uma solidariedade tão humana que me senti profundamente envergonhado. Por meio deles, fomos transformados de figuras petrificadas em pessoas que novamente podiam sorrir.

                Então, recebi uma Bíblia como presente de um capelão do exército inglês. Eu não sabia exatamente o que fazer com ela. À noite, li primeiro os salmos de lamentação do Antigo Testamento. Com a leitura do Salmo 39 (v.3,5,12), me senti tocado:

Esbraseou-se-me no peito o coração; enquanto eu meditava, ateou-se o fogo... à tua presença, o prazo da minha vida é nada... Ouve, Senhor, a minha oração, escuta-me quando grito por socorro, porque eu sou forasteiro à tua presença, peregrino como todos os meus pais o foram.

                Isso foi ao fundo de minha alma. Depois, li o Evangelho de Marcos e encontrei a passagem que menciona o grito de morte de Jesus: "Meu Deus, porque me desamparaste?". Foi naquele momento que pude saber com certeza: 'Aí está um que entende'. Eu comecei a entender o Jesus que foi atribulado por Deus, exatamente porque eu me senti entendido por Ele.

 Cristo - o amigo na peregrinação, que abandonou tudo para procurar as vidas abandonadas. Cristo - aquele que me toma pela mão em seu caminho rumo à ressurreição e à vida. Eu tornei a perceber a coragem de viver. Tomou­me - de modo lento, mas seguro - uma grande esperança na vida plena. Eu ouvi novamente os tons musicais, vi de novo as cores, senti mais uma vez as forças da vida. Naquele momento, eu não me decidi por Cristo, como é comumente exigido por muitos. Mas estou seguro de que, naquele instante e naquele lugar, no escuro buraco da minha alma, Cristo me achou. Posteriormente, me decidi por Cristo e por seu reino e faço isso até hoje. Naqueles dias, o abandono de Cristo na cruz me mostrou onde Deus está presente, onde ele estava naquela noite de chamas em Hamburgo e onde ele estará ao meu lado, aconteça o que acontecer no futuro. Esta convicção não tem me abandonado até hoje.

                Eu me tornei tão fascinado por aquela experiência de vida que perdi meu interesse pela Matemática e pela Física. Decidi estudar Teologia para investigar o que é verdadeiro na fé cristã. A propósito, isso eu fiz contra a vontade de meus pais, que acharam inteiramente supérfluo. No campo de presos escocês, tomei conhecimento de outro campo na Inglaterra, onde se podia estudar Teologia. Eu me inscrevi e fui levado em 1946 por um soldado inglês para Norton Camp, que ficava nas proximidades de Nottingham, num lindo parque do Duque de Portland.

                A iniciativa para a construção do campo foi da ACM e ele era mantido e guardado pelo exército inglês. Naquele lugar, professores prisioneiros ensinaram Teologia aos demais prisioneiros visando a formar pastores para a Alemanha do pós-guerra. Tive a oportunidade de estudar hebraico, ouvir preleções teológicas e ler livros dos quais não entendia uma palavra sequer. Eu também não sabia como e se eu, de fato, me tornaria pastor, pois a igreja era, àquela época, algo inteiramente desconhecido para mim. Mas eu estava em busca da verdade e sentia que não procuraria por Deus se Ele não me escolhesse. Com isso, se iniciou minha ressurreição em vida. Depois dos meus anos das "trevas de Deus", o sol nasceu para mim naquele campo de prisioneiros. Eu ouvi o "sim" de Deus que se esconde em todo "não" dele. Em 1948, retornei da prisão, "mancando da coxa" tal qual Jacó depois de sua luta contra o Anjo do Senhor no Vau de Jaboque. Mas, ainda assim, "abençoado", pois percebi o "rosto resplandecente" de Deus, depois de ter sofrido tanto com a sua "face oculta".

Naquele tempo, me marcaram de modo duradouro três experiências:

                1. Em todo fim, está oculto um novo começo. Quando você procura por ele, ele o achará.

                2. Quando você, em situações de coragem, agarra-se à esperança, as correntes começam a doer, mas a dor é neste caso um sinal de vida. A resignação é, entretanto, um sinal de morte.

                3. A voz divina que eu ouvi por meio de Cristo me falava diariamente: "Assim também procura tirar-te das fauces da angústia para um lugar espaçoso, em que não há aperto" (Jó 36.16).

 

                Eu nunca experimentei Deus como opressivo ou alienante, mas sempre como esse lugar espaçoso da liberdade, no qual se pode respirar e ressurgir. Com isso, deixo as questões pessoais e volto-me para o futuro de Deus, o qual é comum a todos nós.

               

A vinda tripla de Deus

 

                Não somente o Novo Testamento cristão, mas também o Antigo Testamento judeu está orientado para a vinda de Deus ao seu povo, sua humanidade e sua terra. Se o povo se sente em terra estranha, abandonado por Deus e distante da terra prometida, então grita por ele, como mostram bem as lamentações bíblicas: Levanta-te, Senhor; levanta teu rosto e vem! (cf. SI 4.6). Se o povo pressente a vinda de Deus, então deve preparar o caminho: "Levantai­vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória" (SI 24.7). Experimenta­se a presença plena do Deus vindouro e então esse povo canta e dança diante dele, glorifica sua beleza.

                Os dois Testamentos são testemunhas paralelas da esperança em Deus, assim como Israel e a Igreja são testemunhas da esperança no mundo. Nós vivemos no tempo do advento de Deus. A fé nos permite confiar em Deus e a esperança torna nossos sentidos despertos e alertas para o vindouro.

                Eu desejo agora tomar a antiga doutrina da tripla parusia de Cristo, visando partilhar minha experiência pessoal neste sentido: Ele veio na carne, ele vem em Espírito e ele virá em glória.

 

Deus veio a nós em Jesus Cristo

                A esperança cristã futura se fundamenta em uma lembrança histórica segura. Esta é a presencialização do Cristo de Deus, que veio ao nosso mundo. Ele fez da nossa vida a sua própria, transformando assim a terra num lugar de esperança. Tal fato diferencia a esperança cristã de todos os outros sonhos e temores futurísticos que ouvimos com freqüência nos últimos dias.

                Não é minha intenção desenvolver qualquer dogma cristológico, mas falar novamente de modo pessoal. Naqueles anos de guerra e prisão, Jesus Cristo se tornou extremamente próximo de mim quando procurei por Deus e não encontrei qualquer resposta. Assim, eu vim a crer em Deus por meio de Jesus Cristo. É por isso verdade quando digo: Sem Cristo, eu teria me tornado ateu. Pois partindo das experiências da história humana ou da contemplação da natureza, eu não teria a idéia de que existe um Deus. Mais do que isto, não teria nunca pensado e crido que este Deus é amor e quer o nosso bem. Por causa de Cristo, comecei a crer em Deus. Dito de modo mais exato: Eu comecei a crer no Deus de Jesus Cristo. Este Deus que Jesus chamava de modo tão íntimo de Abba - Pai amado - e do qual anunciava aos pobres a chegada do reino. Sempre que penso em Cristo, sinto a proximidade de Deus e da vastidão de seu reino.

                A primeira imagem pela qual fui achado por Cristo foi a imagem daquele que desesperançado, prisioneiro e torturado na cruz dos romanos, gritava por Deus. Eu me senti compreendido por ele como por um amigo que se torna partícipe em nosso destino. Cristo seguiu o caminho do sofrimento e do abandono para procurar pelas pessoas abandonadas e, assim, se tornar irmão delas. Isso me tocou de modo pessoal: Deus abandonou seu Cristo para que Ele viesse ao meu encontro no estado de abandono e me achasse. Descobri, assim, em seu destino, algo que ainda não tinha trabalhado em meu próprio destino. Algo de sua presença em minha própria vida.

                Existe uma pintura medieval que esteve constantemente sobre a minha escrivaninha. Nela, mostra-se Cristo, que vai ao inferno e abre lá uma porta. Um dos perdidos vem ao seu encontro e mostra algo com os dedos dirigidos para si mesmo, como se quisesse dizer: E você vem a mim! Quem sou eu? Aí se dá um movimento na pintura, um conhecimento recíproco. Cristo socorre, Cristo salva. Ele não socorre, todavia, por meio de sua supremacia, mas sim, por sua solidariedade conosco em nossa impotência. "Pelas suas pisaduras, fomos sarados" é o que diz o profeta Isaías, referindo-se ao servo sofredor de Deus, o qual deverá redimir o mundo (Is 53.5).

                "Somente o Deus que sofre pode socorrer" escreveu Dietrich Bonhoeffer na prisão. Deus socorre - primeiro e sempre - por meio de sua compaixão: "No mais profundo abismo, lá estás também" (S1139.8). Da comunhão com o Deus compassivo não nos podem separar nem sofrimento nem inferno.

 

Deus vem a nós em Espírito

                A esperança cristã do futuro se fundamenta na contemplação de Cristo e na experiência do Espírito vivificante. Nós não apenas relembramos a história de Cristo e esperamos pelo futuro de Deus. Nós já experimentamos também hoje "os poderes do mundo vindouro" (Hb 6.5). Essas são as "energias vitais" do Espírito Santo.

                Mas quem é o Espírito Santo? Para mim, o Espírito Santo é o Espírito da vida que vitaliza todas as coisas por ele tocadas. Ele é presença vital de Deus no mundo. O dom da presença deste Espírito de Deus é o que de maior e mais maravilhoso pode ser experimentado por todas as formas de vida, tanto em âmbito pessoal quanto comunitário. No Espírito Santo, não está presente um tipo qualquer de espírito entre tantos outros, mas Deus mesmo. O Deus vivo que é criador, libertador e salvador.

                Onde está o Espírito, ali está Deus de modo especialmente presente. Não em uma forma de onipresença, mas na forma de automanifestação. E onde Deus se manifesta, ali Ele partilha de si mesmo. As energias criativas de sua vida eterna abundam e perpassam nossa vida mortal e a fazem, desde dentro, plenamente viva. Onde quer que sintamos o Espírito de Deus, ali nós experimentamos Deus. Como? Por meio de nossa vida vivida. Nós experimentamos a vida curada e redimida, amada e amável. Não experimentamos a vida apenas como uma nova espiritualidade do coração ou nova teologia da cabeça, mas com todos os nossos sentidos, como uma nova vitalidade da vida. Nós sentimos e degustamos, ouvimos, cheiramos e vemos nossa vida em Deus e Deus em nossa vida, assim como é dito em 1 João 1.1-2:

 O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalpa­ram, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna...).

 

               Existem muitos nomes para este Espírito da vida porque existem variadas experiências de vida. Para mim, são os mais lindos os nomes de consolador (Paracleto) e fonte da vida (fons vitae).

                Na comunhão com Cristo, experimentamos as forças vitais do Espírito divino. Quem se tornou triste e sem participação em nada na vida, quem não sente mais em si qualquer vitalidade, deve se voltar para o Cristo e experimentará a nova vitalidade do Espírito de Deus. A meu ver, esta constitui a nova sensualidade da vida e o vasto âmbito vital de Deus.

                Assim como na experiência de uma grande tristeza nossos sentidos se apagam e não podemos mais ver qualquer cor, ouvir nenhum tom e perceber o paladar, parecendo mortos-vivos, assim também se abrem os nossos sentidos novamente quando respiramos o amor de Deus. Nós vemos de novo este mundo multicolorido, nós ouvimos novamente melodias, recuperamos nosso paladar e todos os sentimentos. Somos tomados por uma grande aceitação da vida, aceitação do Espírito vital divino.

                Para o desenvolvimento desta nova vida, precisamos de um lugar espaçoso. "Tu me pões num lugar espaçoso". Este lugar espaçoso é o presente do Deus infinito, o qual cerca a nossa vida finita (SI 139.5). A presença divina nos cerca por todos os lados. Isso nos permite desenvolver nossa vida finita para todos os lados. Nós podemos nos movimentar em Deus e Deus morar em nós. Deus não é somente uma pessoa com a qual podemos falar, mas também o espaço no qual podemos desenvolver nossas vidas. Segundo a tradição judaica, um dos nomes de Deus é Makom (espaço). Nós, seres humanos, damo-nos espaço mutuamente sempre que nos abrimos em amor e amizade mútuos e permitirmos que os outros seres humanos tomem parte em nossa vida. Sem tal espaço livre na vida comunitária, não existe qualquer liberdade pessoal. O amor dá espaço e tempo para a liberdade. Onde quer que nós experimentemos este espaço livre, aí nós experimentamos a presença de Deus entre nós.

 

Deus vem a nós em Glória

                Eu, pessoalmente, conheci a fé em Jesus Cristo como uma grande esperança, pois o Deus que nos foi mostrado por Cristo é o "Deus da esperança", como Paulo o chama em Romanos 15.13. Deus não é o eterno que está aqui, esteve aqui e aqui estará, mas o Deus que "vem" (Ap 1.4). Ele vem ao nosso encontro desde o seu futuro. Por isso é que o abrangente horizonte do futuro não é algo que se acrescente ao Cristianismo, mas seu elemento constitutivo. Crer significa viver na presença do Cristo ressuscitado e se deixar orientar pelo seu reino vindouro "assim na terra como no céu". Nós vivemos na expectativa de sua vinda. Nós não aguardamos o seu "retorno", mas vivemos cada dia na luz de sua vinda. Sobre nós brilha a estrela da promessa. A promessa de Deus é como a aurora que anuncia a chegada de um novo dia: o dia de Deus. "Vai alta a noite, e vem chegando o dia", assim descreve Paulo a sensação cristã do tempo (Rm 13.12).

                Que futuro pode preencher as promessas de Deus, nossas esperanças e as expectativas da terra? Deus vem para morar na terra com os seres humanos. A totalidade da criação se tornará, então, seu templo. O Apocalipse descreve isto por meio da imagem da "Jerusalém divina", a qual desce sobre a terra. Por conta dessa Schechinah de Deus, tudo precisa ser recriado e preparado. Então serão enxugadas todas as lágrimas, o sofrimento e pranto vão passar e a morte não existirá mais (Ap 21.5). Quando o divino estiver em tudo o que é terreno e tudo o que é terreno estiver em todo o divino, então a beleza divina fará todas as coisas resplandecerem. Esta é a plenificação da esperança histórica da humanidade e a consumação da criação. Em seguida, estará tudo criado como foi no princípio: a vida e a luz, as plantas e os animais e também os seres humanos.

                Segundo 2 Pedro 3.12, devemos esperar e "apressar" o futuro de Deus. Isso soa contraditório, mas não o é. Vamos traduzi-Io em nossa experiência e em nossa língua:

Aguardar: é não se conformar às condições de injustiça e não reconhecer as forças daquilo que é factual, pois bem se sabe que alguma coisa melhor pode acontecer e algo diferente está por vir. Aguardar significa nunca se resignar, nem entregar-se a si mesmo. Poder aguardar - isto é uma arte da esperança. Paciência é a virtude da esperança. Aguardar significa viver em ansiosa atenção até a che­gada da hora da consumação final. Poder aguardar é também fidelidade ao futuro prometido. "Senhor, Deus nosso, outros senhores têm tido domínio sobre nós; mas graças a ti somente é que louvamos o teu nome", assim disse o povo' de Deus prisioneiro quando do cativeiro babilônico (Is 26.13). E ele sobreviveu. Não existe nenhuma teologia da libertação sem esta teologia do cativeiro, como Rubem Alves notou bem.

 

Apressar: Aqui, o que se tem em mente é a superação da realidade presente e a antecipação do futuro do novo mundo de Deus, a cada passo e em cada ato nosso. Por meio de cada ato de justiça, preparamos o caminho da nova terra, onde reina a justiça. Faz-se justiça a quem' sofre violência e brilha, então, o futuro de Deus em seu mundo. Engajamos-nos em favor de "órfãos e viúvas" e surge, então, um pouco mais de verdade em nosso mundo.

                Conforme nós exploramos suas riquezas e forças vitais, a Terra geme com a violência e a injustiça. Ela aguarda por seu direito. Nós nos "apressamos" ao encontro do futuro de Deus quando antecipamos aquela justiça por meio da qual a "nova terra" deve surgir.

Aguardar e apressar: isto significa resistir e antecipar. Com isso, santificamos a vida e nos tornamos seres seguros do futuro de Deus.

 

Três experiências latino-americanas

1977: Brasil

                Há trinta e três anos, vim pela primeira vez à America Latina. Recebi um convite do ISEDET, em Buenos Aires, para as suas Carnahan-Lectures. Àquela viagem, se agregaram seminários e institutos teológicos no Brasil, Trinidad e Tobago e México, o que fez com que diante de mim estivesse um programa com seis semanas de duração.

Para mim, havia uma razão especial em voar para Buenos Aires. Na Argentina, governava naquele tempo uma ditadura militar brutal. A filha do meu colega, Ernst Kasemann, vivia como assistente social em Buenos Aires. Na primavera de 1977, Elizabeth Kasemann "desapareceu" de repente. Algumas semanas depois, se tornou claro que ela fora torturada e morta em um quartel militar. Por pressão do pai, o corpo foi surpreendentemente entregue. Ela tinha três tiros nas costas. Em 16 de junho de 1977, a sepultei em Tübingen. Nunca me foi tão difícil pregar um sermão fúnebre. No outono do mesmo ano, conversei com o embaixador alemão em Buenos Aires sobre esse assunto. Somente depois de vinte anos pôde ser expedido um mandado de prisão internacional contra seus assassinos, que são conhecidos nominalmente.

                Depois de uma visita a São Leopoldo, fui, em setembro, para Rudge Ramos, em São Paulo. Lá estava edificado o antigo prédio do seminário metodista e, atrás deste, estava construída a Universidade Metodista, que começava então a oferecer cursos noturnos. Nós realizamos um encontro com três dias de duração. O professor Duncan A. Reily traduziu minhas conferências. Naquela ocasião, visitei um seminário no centro da cidade e também a Igreja "O Brasil para Cristo" de Manuel de Metio. No Rio de Janeiro, não estive somente em Copacabana, mas no Instituto Bennett. Acir Goulart me mostrou não somente as luzes, mas também o "lado sombrio" da "cidade maravilhosa". Em Recife, fui recebido por Dom Hélder Câmara. Nós discutimos sobre direitos humanos e sobre o que eu antigamente chamei de "revolução de Deus": a ressurreição de Cristo, sua vitória sobre a morte e o inferno, assim como a ressurreição do povo e sua vitória sobre a opressão externa e a apatia interna. Tratou-se da "vitória da vida" e da teologia da vida.

                Como conclusão daquela viagem, houve uma conferência com teólogos da libertação na Cidade do México que transcorreu dura, mas cordial. Aquele encontro me conduziu a um processo de reflexão. À época, alguns teólogos latino-americanos eram ainda muito cuidadosos sobre sua libertação da teologia e filosofia européias e se utilizavam, para isso, notadamente de ferramental marxista. A opção pelos pobres e a crítica à exploração e à escravidão promovidas pelos impérios europeus permaneceram, pois são necessárias. Mas as faces concretas dos pobres levaram, neste ínterim, a uma pluralidade de perspectivas teológicas. A teologia latino-americana já se tornou há muito tempo maior de idade e sua teologia feminista floresce. A teologia na Europa pode aprender das perspectivas politicas e sociais da teologia latino-americana. Assim, dá-se a comunio sanctorum (comunhão dos santos) do "dar e receber" teológicos. Eu estou aqui para louvá-Ia e preservá-Ia.

 

1989: EI Salvador

                Em 1990, recebi uma carta de Robert MacAfee Brown. Ele retomara recentemente de El Salvador e me informava que no dia 16 de novembro de 1989, soldados do governo assassinaram, à noite, na Universidade Jesuíta UCA, seis sacerdotes, além da empregada e sua filha. Os assassinos queriam silenciar a voz crítica de Ignácio Ellacuria. Jon Sobrino, por coincidência, não estava no país.

                "Quando os assassinos trouxeram alguns dos corpos de volta para o prédio e depositaram o corpo de Ramon Moreno no quarto de Jon Sobrino, eles empurraram uma estante. Um dos livros caiu no chão e foi embebido pelo sangue do mártir. Quando ele foi retirado pela manhã, descobriram que o livro era "El Dios crucificado". A mesma informação me foi dada por carta por um jesuíta alemão, que acrescentou fotos ao relato. Dois anos depois, fiz a minha própria viagem de peregrinação aos túmulos dos mártires em El Salvador. Eu vi ali meu livro embebido de sangue, protegido por um vidro, como um símbolo do que antes realmente aconteceu ali. Jon Sobrino, com quem eu tinha uma estreita amizade por meio do conselho editorial da revista Concilium, me conduziu ao lo­cal onde o arcebispo Dom Oscar Romero foi fuzilado durante uma missa. Uma reliquia me lembra a sangrenta luta por liberdade dos povos e a igreja popular em El Salvador.

 

1991-2008: Nicarágua

                Em 1991, o Instituto Goethe me enviou para uma viagem pela América central e assim eu fui também para a Nicarágua. Ali, visitei o grande seminário teológico evangélico CIEETS em Manágua e o seu diretor, o carismático Benjamin Cortês. O prédio do seminário era uma barraca coberta de palha. Em 1991, apenas ocasionalmente havia energia elétrica e água. No norte os "contra-revolucionários" ainda eram combatidos. Eu já começava a me sentir incomodado com as conferências e viagens ecumênicas. Procurava um lugar concreto, no qual pudesse me engajar. Eu o achei na Nicarágua. Desde então, retomei quase a cada dois anos para Manágua. Nós organizamos maravilhosas conferências para os seminários protestantes na América Central. Em 1996, tomei parte da fundação da primeira universidade evangélica da América Central. Na Universidade Evangélica Nicaragüense estudam hoje mais de cinco mil estudantes em Manágua, Masaya e Matagalpa. E fui sempre para lá, com o intuito de abrir o ano acadêmico da universidade com uma Cathedra. Há dois anos, o seminário teológico e a universidade celebraram comigo meu octogésimo aniversário, com uma festa em Granada. Eu aprendi a amar a terra dos vulcões e das lagunas, entre o Pacífico e o Atlântico. Eu valorizo muito o pobre e corajoso povo da Nicarágua que a si mesmo libertou-se do ditador Anastácio Somoza.

                Estes são os meus três pontos de contato com a América latina. Eles in­fluenciaram minha reflexão teológica e acompanharam minha vida.

                Se eu voltarei novamente à América Latina, não sei. Já estou bastante idoso, com oitenta e dois anos de idade. Eu não me tornarei novamente jovem "como uma águia", mas sei-me conduzido "sobre as asas da águia" por um longo, às vezes difícil, mas sempre interessante caminho com a teologia. Na Alemanha, quando da despedida, se diz: "Auf wiedersehen", mas hoje à noite, prefiro dizer em português: "Adeus"!

Esta e outras palestras de Jürgen Moltmann você pode  ler no livro Vida, Esperança e Justiça - um Testamento Teológico para a América Latina, publicado pela EDITEO. Tel. (11) 4366-5983

 


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