Al?m de rosas e bombons
Um bate-papo a prop?sito do centen?rio do Dia Internacional da Mulher
No ano de 2010 comemora-se o centen?rio de institui??o do Dia Internacional da Mulher. A data, mais do que uma festividade, ? um perturbador est?mulo ? reflex?o: no dia 8 de mar?o de 1857, 129 mulheres e meninas trabalhadoras da ind?stria t?xtil morreram carbonizadas dentro de uma f?brica enquanto reivindicavam melhores condi?es de vida e trabalho. Em 1910, o Congresso Internacional de Mulheres, realizado na Noruega, escolheu a data desta trag?dia para instituir o Dia Internacional da Mulher. Hoje, passado um s?culo, a data costuma ser celebrada com homenagens, bombons e flores. As mulheres as recebem de bom grado. Mas querem tamb?m discutir e sonhar com novas e mais saud?veis rela?es entre homens e mulheres, numa sociedade justa e inclusiva.
![]() | Dentre as mulheres que discutem, sonham e, com seus talentos, buscam construir essa sociedade mais igualit?ria, est? a te?loga Sandra Duarte de Souza. Mestre e doutora em Ci?ncias da Religi?o, Sandra ? professora de Ci?ncias Humanas e Sociais da Faculdade de Teologia e do Programa de P?s Gradua??o em Ci?ncias da Religi?o da Universidade Metodista de S?o Paulo e editora da revista Mandr?gora, publica??o do MANDR?GORA/NETMAL – Grupo de Estudos de G?nero e Religi?o da mesma Universidade. Em parceria com a professora Carolina Teles Lemos, da Universidade Cat?lica de Goi?s, ela acaba de lan?ar o livro A casa, as mulheres e a igreja: rela?es de g?nero e religi?o no contexto familiar, pela Fonte Editorial. |
Voc? tem pesquisado e escrito no campo da teologia feminista. A velha express?o "sou feminina, n?o feminista" ainda repercute na Igreja? Afinal, o que ? teologia feminista?
Ser feminista ? lutar por direitos pol?ticos e pol?ticas p?blicas voltadas para as necessidades espec?ficas das mulheres. Mas a interpreta??o da palavra "feminismo" foi cultivada pela m?dia de maneira muito negativa. Um movimento pela autonomia das mulheres era uma id?ia que n?o ca?a bem no s?culo 19. Quando as mulheres come?aram a lutar por seus direitos, buscou-se desqualificar o ser feminista. Ainda hoje, numa sociedade marcada pela cultura patriarcal, a palavra ? carregada de preconceito. Ao mesmo tempo, persistem as piadas relacionadas ao sexo ou ? intelig?ncia das mulheres; usa-se a imagem da mulher para vender cerveja.
Se feminismo j? ? um termo problem?tico, pense isso no contexto religioso e particularmente crist?o, no qual h? toda uma constru??o que secundariza as mulheres. N?s tratamos Deus como homem – uma divindade que tem poder e que, portanto, s? pode ser homem. A teologia feminista ? recente na hist?ria do pensamento crist?o, embora haja iniciativas pioneiras, como a de Elisabeth Cady Stanton, que em 1898 publicou a "B?blia da Mulher" – que n?o ? essa B?blia rosa que est? sendo vendida nas livrarias. Tratava-se de uma nova leitura da B?blia (veja quadro abaixo).
Os estudos desenvolvidos nos EUA e Fran?a t?m grande import?ncia para as reflex?es que se desenvolvem no Brasil. H? algumas te?logas que podem ser citadas como refer?ncia, como as americanas Rosemary Radford Ruether, Mary Hunt e Mary Daily. Entre as latinoamericanas, Ada Mar?a Isasi-D?az e Maria Pilar Aquino. O Brasil tamb?m conta com pesquisadoras na ?rea, como Ivone Gebara e Luiza Tomita, cat?licas, e Nancy Cardoso Pereira e T?nia Mara Vieira Sampaio, metodistas. Mas publicar livros com a palavra feminista no t?tulo ? dif?cil, h? muita rejei??o por parte das editoras religiosas, que preferem termos como "teologia na perspectiva da mulher", e "teologia feminina".
Hoje j? se ouve falar mais em "teologia de g?nero" do que "teologia feminista". Houve uma mudan?a de conceito?
G?nero ? uma ferramenta de an?lise que permite pensar a tem?tica de maneira relacional, ou seja, desconstruindo "constru?es sociais" baseadas em
todo um sistema de rela?es sociais nos quais se inserem homens e mulheres. Joan Scott escreveuem finais da d?cada de 80 um artigo que consagrou o uso do termo g?nero, cujo t?tulo ? "G?nero uma categoria ?til para a an?lise hist?rica".Nem todas as feministas concordam com essa abordagem. Algumas consideraram que a categoria "g?nero" terminou esvaziando do feminismo seu conte?do pol?tico. Masa abordagem de g?nero n?o antagoniza com o feminismo. Ela aprimora o olhar feminista. As teologias que t?m empregado g?nero como categoria anal?tica s?o teologias feministas.
As distin?es entre caracter?sticas femininas e masculinas ("menina ? melhor em portugu?s, menino em matem?tica"; "mulher ? mais emocional, homem ? mais racional") criaram fun?es ditas masculinas e fun?es femininas, o que se percebe tamb?m na Igreja. Por exemplo: mais mulheres na doc?ncia, mais homens na administra??o. Como voc? v? essa quest?o?
Essa dicotomia ? baseada numa leitura essencialista; ou seja, acredita-se que as mulheres tenham uma natureza diversa ? do homem, o que lhe confere caracter?sticas e pap?is distintos. O grande problema ? o que se constr?i sobre o dado biol?gico: n?o se deveriam atribuir fun?es ou construir hierarquias sobre essas diferen?as. Se no passado n?o t?nhamos mulheres em v?rias atividades, ? porque elas eram impedidas de exerc?-las. ? claro que o feminismo n?o nega a exist?ncia das diferen?as biol?gicas, mas ele surgiu como um movimento disposto a discutir politicamente as igualdades. Surgiu discutindo, por exemplo, o direito absoluto que os homens tinham sobre o corpo das mulheres – o que lhes dava, at?, direito de matar.
Mas, voltando para o campo religioso, vemos que somos muito essencialistas. Ainda existe todo um discurso que, baseado em Agostinho e Tom?s de Aquino, desqualifica a mulher. Estes te?logos se alimentam dos fil?sofos cl?ssicos. Tom?s de Aquino era aristot?lico. E Arist?teles dizia que alguns (homens) nasceram para dominar e outros para serem dominados. Tanto para Agostinho quanto para Tom?s de Aquino n?s somos menores e s?o os homens que orientam nossa vida. Fomos associadas ao mal, ao demon?aco, estamos seduzindo o tempo todo… Lutero dizia que as meninas falam mais cedo porque "ervas daninhas crescem mais r?pido"… Pois, ?, Lutero! Calvino aconselhava as mulheres a n?o abandonar os seus maridos mesmo que fossem severamente espancadas. Elas s? poderiam abandon?-los em caso de risco ? vida. Mas, como saber o quanto uma pessoa v?tima de viol?ncia pode suportar?
E n?o ? preciso ir t?o distante. No final dos anos 90, no jornal oficial de minha pr?pria igreja, um pastor publicou artigo no qual ele aconselhava ?s mulheres serem submissas a seus maridos, pois, se eles n?o encontrassem em casa o que queriam, poderiam ir "buscar em outro lugar". O texto b?blico estava sendo usado para justificar a infidelidade masculina! Mesmo no ?mbito das faculdades de teologia, as mulheres ainda est?o em posi?es perif?ricas, ministrando aulas complementares como sociologia, antropologia, psicologia. De maneira geral, as mat?rias b?sicas como teologia sistem?tica e B?blia s?o ministradas pelos homens.
Recentemente a imprensa noticiou o aumento de homens e mulheres nas creches e escolas infantis do ensino p?blico no estado de S?o Paulo. Dizia a reportagem ser muito positivo poder contar com o ponto de vista masculino e com a refer?ncia de figura paterna na educa??o das crian?as. Voc? concorda com este ponto de vista? E na Igreja, existe essa tend?ncia de termos homens ensinando crian?as?
Quando um trabalho se "masculiniza" ele ganha valor. Veja o que acontece com a inser??o dos homens no mundo da culin?ria. Se as mulheres s?o boas cozinheiras, os homens s?o grandes "chefs". Quando um homem cuida de crian?a todos dizem "uau, que fant?stico!" Mulher cuidando de crian?a ? natural. Mas na Igreja ainda ? bem raro ver homens lecionando para classes de crian?as na Escola Dominical ou cuidando do ber??rio. Ainda se entende que ? um "desperd?cio" empregar homens nestas fun?es; eles seriam melhor aproveitados lecionando para os adultos. Embora, como Igreja, digamos que ? das crian?as o Reino dos C?us, o trabalho com crian?as n?o ? valorizado.
A imprensa tamb?m tem noticiado a exist?ncia de igrejas (no Brasil e no exterior) que est?o promovendo lutas de "vale-tudo" para atrair os jovens. Um dos pastores entrevistados afirma que ?necess?rio "injetar masculinidade" nos minist?rios. Diz que os homens na faixa de 18 a 34 anos "caem no sono" porque as igrejas t?m "tons past?is". H? um recrudescimento do machismo no jovem de hoje?
O homem ? socializado para tornar-se agressivo. Por que o seguro de carro ? mais barato para mulheres do que para homens? Simplesmente porque os meninos s?o criados para serem mais competitivos, mais agressivos, e isso se reflete nos acidentes de tr?nsito. Essa agressividade ? devida apenas a testosterona? Eu acredito que ? muito mais pelo contexto cultural que a favorece.
Desde cedo os meninos jogam games violentos, praticam artes marciais, s?o ensinados numa cultura de viol?ncia, e ? isso o que aparece agora na iniciativa dessas igrejas. Existe a id?ia de que se a agressividade do menino n?o for estimulada, ele pode se transformar em homossexual. Outro dia uma amiga minha discutiu essa quest?o na escola de seu filho. O menino chegou em casa com uma espada de brinquedo e ela foi ? escola reclamar que o brinquedo de luta contrariava os valores defendidos por sua fam?lia. A resposta da professora foi que o menino, uma crian?a tranq?ila, era muito "banana" e que era necess?rio estimular sua "masculinidade".
Por que n?o podemos deixar os meninos brincarem com bonecas? A boneca ensina o cuidado com o outro. N?s, mulheres, n?o somos naturalmente cuidadoras, somos ensinadas a cuidar do outro. Cuidamos dos filhos, dos maridos, dos pais, de todo mundo… menos de n?s mesmas. J? aos meninos s?o dados carrinhos. O carro ensina a autonomia, a condu??o da pr?pria vida. O menino que brinca com o carro, mesmo que esteja dentro de casa, imagina a rua… Em contrapartida, boneca e fog?ozinho restringem a menina ao espa?o dom?stico que sempre foi conferido ? mulher. Mas o menino tamb?m ? v?tima desta socializa??o. Ele nunca pode estar no espa?o dom?stico. Tanto que, quando o homem fica desempregado, ele n?o fica em casa. Muitos ficam no bar. Adolescentes saem cedo da escola porque precisam trabalhar, precisam ser "produtivos".
Particularmente no contexto da alta concorr?ncia religiosa busca-se um diferencial de mercado. Uma vez que as igrejas perderam sua identidade, todas se parecem iguais. Muda-se o r?tulo, mas o conte?do ? o mesmo. Oferecer um novo "produto", como a luta, ? uma tentativa de se diferenciar. O que pode gerar ades?o por algum tempo, uma vez que se trata de produto descart?vel.
H? tamb?m um recrudescimento dos fundamentalismos, o que afeta as rela?es de g?nero. Entre os fundamentalistas, tem havido um grande refor?o da submiss?o das mulheres. Na literatura americana, h? muitos livros escritos para as mulheres que estabelecem um perfil feminino desvantajoso nas rela?es de for?a.
Este conceito tem que ser desconstru?do na Igreja. E essa desconstru??o passa pelo gabinete pastoral, que ? o lugar de poder da Igreja. Embora o poder regulador da Igreja esteja mais relativizado nestes tempos de seculariza??o, o que o pastor ou pastora fala ainda faz muita diferen?a para o fiel. Se o pastor aconselha a uma mulher v?tima de viol?ncia dom?stica que n?o tome nenhuma atitude, que fique em casa, ela pode n?o amanhecer viva. Isso ? muito s?rio. N?o sei se todos os pastores t?m consci?ncia do poder que exercem sobre a vida dos fi?is.
Pesquisa da soci?loga Maria das Dores Campos Machado (Carism?ticos e pentecostais: ades?o religiosa na esfera familiar) mostra que quando a ades?o ? igreja ? s? da mulher, a din?mica familiar n?o muda muito. Quando a ades?o ? do casal ou do homem, a possibilidade de mudan?a ? enorme. A Igreja entra como um elemento regulador importante. Diminuem os problemas relacionados a alcoolismo e viol?ncia dom?stica. O estudo mostra a import?ncia da lideran?a religiosa e do papel da Igreja na constru??o de novas rela?es
Entrevista a Suzel Tunes
Foto extra?da do blog da XIII Semana de Estudos da Religi?o
Uma leitura feminista da B?blia. Em 1898.
Criou Deus, pois, o homem ? sua imagem, ? imagem de Deus o criou;,homem e mulher os criou. G?nesis 1.27
Se a linguagem tem algum significado, n?s temos neste vers?culo a clara declara??o da exist?ncia do elemento feminino da divindade, igual em poder e gl?ria ao masculino. O Pai e M?e Celestial! "Deus criou os seres humanos ? sua pr?pria imagem, homens e mulheres".
A B?blia da Mulher, 1898
Igualdade de direitos foi uma bandeira que a escritora americana Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) levantou a vida inteira. Come?ou questionando a escravid?o e as justificativas b?blicas para sua exist?ncia. Ap?s a aboli??o, em 1863, ela voltou suas aten?es para a discrimina??o que o seu pr?prio sexo sofria – e, mais uma vez, com respaldo das Escrituras.Ela escreveu: "Quando as mulheres entendem que os governos e as religi?es s?o inven?es humanas, que b?blias, livros de ora??o, catequeses e enc?clicas s?o emana?es do c?rebro do homem, elas deixar?o de ser oprimidas pelas imposi?es que lhes chegam com a autoridade divina do ?Assim diz o Senhor.? "
Junto com outras mulheres, o "Comit? Revisor", Elizabeth desenvolveu um projeto ambicioso e pol?mico: uma nova interpreta??o da B?blia denominada A B?blia da Mulher, cuja primeira edi??o foi publicada em 1898. ? uma das primeiras tentativas de avalia??o da heran?a judaico-crist? e seu impacto sobre as mulheres atrav?s da hist?ria.
Elizabeth Stanton concluiu que "a B?blia em seus ensinos degrada a mulher do G?nesis ao Apocalipse". No entanto, ela e as outras autoras acabaram encontrando muito o que admirar na B?blia, particularmente nas hist?rias de mulheres do Antigo Testamento.
Militante do sufr?gio universal, Elizabeth morreu 18 anos antes de ver aprovada a 19? Emenda da Constitui??o dos Estados Unidos, que finalmente garantia ?s mulheres o direito ao voto – e teria sua reda??o inspirada nos pr?prios textos de Elizabeth. Seu epit?fio poderia ser o poema que ela citou na primeira p?gina do seu di?rio:
Eu vivo …
Para a causa que carece de assist?ncia,
Para o mal que precisa de resist?ncia,
Para o futuro na dist?ncia
E o bem que eu posso fazer.
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