Ap?s fundar igreja, reportagem da Folha abre conta banc?ria e faz aplica??o isenta de IR
Al?m de vantagens fiscais, ministros religiosos t?m direito a pris?o especial e est?o dispensados de prestar servi?o militar
H?LIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Bastaram dois dias ?teis e R$ 218,42 em despesas de cart?rio para a reportagem da Folha criar uma igreja. Com mais tr?s dias e R$ 200, a Igreja Helioc?ntrica do Sagrado Evang?lio j? tinha CNPJ, o que permitiu aos seus tr?s fundadores abrir uma conta banc?ria e realizar aplica?es financeiras livres de IR (Imposto de Renda) e de IOF (Imposto sobre Opera?es Financeiras).
Seria um crime perfeito, se a pr?tica n?o estivesse totalmente dentro da lei. N?o existem requisitos teol?gicos ou doutrin?rios para a constitui??o de uma igreja. Tampouco se exige um n?mero m?nimo de fi?is.
Basta o registro de sua assembleia de funda??o e estatuto social num cart?rio. Melhor ainda, o Estado est? legalmente impedido de negar-lhes f?. Como reza o par?grafo 1? do artigo 44 do C?digo Civil: “S?o livres a cria??o, a organiza??o, a estrutura??o interna e o funcionamento das organiza?es religiosas, sendo vedado ao poder p?blico negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necess?rios ao seu funcionamento”.
A autonomia de cada institui??o religiosa ? quase total. Desde que seus estatutos n?o afrontem nenhuma lei do pa?s e sigam uma estrutura jur?dica assemelhada ? das associa?es civis, os templos podem tudo.
A Igreja Helioc?ntrica do Sagrado Evang?lio, por exemplo, pode sem muito exagero ser descrita como uma monarquia absolutista e heredit?ria. Nesse quesito, ela segue os passos da Igreja da Inglaterra (anglicana), que tem como “supremo governador” o monarca brit?nico.
Livrar-se de tributos ? a principal vantagem material da abertura de uma igreja. Nos termos do artigo 150, VI, b da Constitui??o, templos de qualquer culto s?o imunes a impostos que incidam sobre o patrim?nio, a renda e os servi?os, relacionados com suas finalidades essenciais.
Isso significa que, al?m de IR e IOF, igrejas est?o dispensadas de IPTU (im?veis urbanos), ITR (im?veis rurais), IPVA (ve?culos), ISS (servi?os), para citar s? alguns dos v?rios “Is” que assombram a vida dos contribuintes brasileiros. A ?nica condi??o ? que todos os bens estejam em nome do templo e que se relacionem a suas finalidades essenciais -as quais s?o definidas pela pr?pria igreja.
O caso do ICMS ? um pouco mais pol?mico. A doutrina e a jurisprud?ncia n?o s?o uniformes. Em alguns Estados, como S?o Paulo, o imposto ? cobrado, mas em outros, como o Rio de Janeiro e Paran?, por for?a de legisla??o estadual, igrejas n?o recolhem o ICMS nem sobre as contas de ?gua, luz, g?s e telefone que pagam.
Certos autores entendem que associa?es religiosas, por analogia com o disposto para outras associa?es civis, est?o legalmente proibidas de distribuir patrim?nio ou renda a seus controladores. Mas nada impede -ali?s ? quase uma praxe- que seus diretores sejam tamb?m sacerdotes, hip?tese em que podem perfeitamente receber proventos.
A quest?o fiscal n?o ? o ?nico benef?cio da empreitada. Cada culto determina livremente quem s?o seus ministros religiosos e, uma vez escolhidos, eles gozam de privil?gios como a isen??o do servi?o militar obrigat?rio (CF, art. 143) e o direito a pris?o especial (C?digo de Processo Penal, art. 295).
Na d?vida, os filhos var?es dos s?cios-fundadores da Igreja Helioc?ntrica foram sagrados minissacerdotes. Neste caso, o modelo inspirador foi o budismo tibetano, cujos Dalai Lamas (a reencarna??o do lama anterior) s?o escolhidos ainda na inf?ncia.
Voltando ao Brasil, h? at? o caso de cultos religiosos que obtiveram licen?a especial do poder p?blico para consumir ritualisticamente drogas alucin?genas.
Desde os anos 80, integrantes de igrejas como Santo Daime, Uni?o do Vegetal, A Barquinha est?o autorizados pelo Minist?rio da Justi?a a cultivar, transportar e ingerir os vegetais utilizados na prepara??o do ch? ayahuasca -proibido para quem n?o ? membro de uma dessas igrejas.
Se a Lei Geral das Religi?es, j? aprovada pela C?mara e aguardando vota??o no Senado, se materializar, mais vantagens ser?o incorporadas. Templos de qualquer culto poder?o, por exemplo, reivindicar apoio do Estado na preserva??o de seus bens, que gozar?o de prote??o especial contra desapropria??o e penhora.
O diploma tamb?m refor?a disposi?es relativas ao ensino religioso. Em princ?pio, a Igreja Helioc?ntrica poder? exigir igualdade de representa??o, ou seja, que o Estado contrate professores de heliocentrismo.
Colaboraram os bispos CLAUDIO ANGELO, editor de Ci?ncia, e RAFAEL GARCIA, da Reportagem Local
Imunidade visa assegurar a liberdade de culto
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
A l?gica por tr?s da imunidade tribut?ria para igrejas ? coloc?-las a salvo de uma da mais formid?veis armas de destrui??o em massa ? disposi??o do Estado: os impostos.
Com efeito, nunca foi muito dif?cil para governantes inviabilizar as atividades de seus desafetos apenas aumentando as taxas que incidem sobre o seu neg?cio. A imunidade seria assim um refor?o econ?mico ao princ?pio constitucional que estabelece a liberdade de culto.
O racioc?nio ? irretoc?vel. O ?nico problema ? que ele poderia ser aplicado a todos os ramos de atua??o. Por que igrejas devem ser protegidas, mas n?o o com?rcio, a ind?stria e profissionais liberais em geral?
Como o poder p?blico n?o pode dar-se ao luxo de deixar escapar toda a sua base de arrecada??o, o constituinte fez uma op??o preferencial pela religi?o quando a contemplou com a imunidade. Concedeu a igrejas um benef?cio que n?o ? nem pode ser estendido a todos.
Encontram-se em categoria semelhante partidos pol?ticos, sindicatos, institui?es sem fins lucrativos voltadas ? educa??o e ? assist?ncia social e certos produtos culturais -o papel para impress?o de livros, jornais e peri?dicos ? imune a tributa??o. S?o atividades que, ou bem lidam com conte?dos pol?tico-ideol?gicos sens?veis, ou poupam o Estado de incorrer em gastos sociais, ou ainda t?m como apan?gio a livre circula??o de ideias.
A religi?o, por?m, devido a suas particularidades epistemol?gicas, goza de autonomia substancialmente maior do que suas cong?neres. A lei define de modo mais ou menos preciso o que ? uma institui??o filantr?pica e quais requisitos ela precisa cumprir para fazer jus ?s vantagens fiscais. J? as igrejas, at? por supostamente lidarem com o outro mundo, s?o refrat?rias a controle pr?vio. Que autoridade terrena pode garantir n?o ser a vontade de Deus que os fi?is de um culto consumam ch?s alucin?genos ou recusem transfus?es de sangue?
Na pr?tica, o ?nico controle que o Estado acaba exercendo ? o dos pontos mais fundamentais do C?digo Penal. N?o se pode criar um culto que envolva sacrif?cios humanos ou que substitua o d?zimo por assaltos a banco. Pode-se, por?m, pleitear o direito ritual?stico de consumir drogas e, ao contr?rio de comerciantes inescrupulosos, n?o ? preciso temer os dispositivos do C?digo do Consumidor que punem, por exemplo, a propaganda enganosa.
Muitos ver?o a? uma vulnerabilidade do sistema. Pode ser. Mas, aceitando-se o pressuposto de que a plena liberdade de culto ? um valor a preservar, n?o existe muita sa?da.
Aqui, parece mais razo?vel ou eliminar qualquer tratamento diferenciado para as igrejas ou aceitar as consequ?ncias dos privil?gios a elas concedidos como mais um dos paradoxos da democracia. (HS)
Outros pa?ses tamb?m d?o concess?es
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
A concess?o de facilidades a igrejas n?o ? uma exclusividade do Brasil. Certos pa?ses ocidentais v?o ainda mais longe e, al?m de oferecer isen?es tribut?rias, chegam at? mesmo a sustentar diretamente alguma religi?o.
? o caso da Argentina, onde arcebispos, bispos e bispos auxiliares cat?licos t?m seus sal?rios pagos pelo poder p?blico.
Na Espanha, at? 2006, a Igreja Cat?lica punha as m?os em 0,5239% do Imposto de Renda recolhido ?s pessoas f?sicas. Depois de 2006, ap?s acordo entre o governo espanhol e bispos, ela fica com uma porcentagem que varia entre 0,5% e 0,7%, mas s? dos contribuintes que indicarem na declara??o que desejam financiar a Santa S?.
Na It?lia vigora o “otto per mille”, sistema pelo qual 0,8% do IR de cada contribuinte vai para a igreja de sua prefer?ncia ou para um programa de assist?ncia social.
At? na Fran?a, p?tria do laicismo (e do anticlericalismo), igrejas gozam de certas vantagens fiscais e o contribuinte pode abater de seu IR parte do valor de doa?es.
No mundo germ?nico, a situa??o n?o ? muito diferente. Na ?ustria, Dinamarca, Finl?ndia, Alemanha, Isl?ndia, Su?cia e em alguns cant?es da Su??a existe o “Kirchensteuer” (imposto da igreja). Isso significa que o Estado faz as vezes de coletor de “d?zimo” para as institui?es religiosas. Nos pa?ses em que h? uma igreja oficial, ela costuma tamb?m receber subven?es diretas.
Na Alemanha nominalmente laica a “facada” ? o correspondente a 8% ou 9% do imposto devido de cada contribuinte. Os que se declararem agn?sticos ou ateus se livram da taxa. Na Isl?ndia, n?o h? sa?da: quem n?o pertence a nenhuma confiss?o paga o tributo para a Universidade da Isl?ndia.
Curiosamente, ? nos EUA, o templo da religiosidade no Ocidente, que o sistema se afigura um pouco mais racional. Ali, as isen?es n?o s?o absolutas nem incondicionais. Se a igreja se meter muito escancaradamente em a?es de lobby, em campanhas eleitorais ou se violar pol?ticas p?blicas consideradas fundamentais (como o combate ao racismo), pode perd?-las. (HS)
Reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo de 29 de novembro de 2009.