GRACE


CADA VEZ mais penso que o temperamento determina o pensamento, e n?o o contr?rio. Explico-me: quando lemos um autor ou um livro, ou ouvimos uma ideia que nos parece verdadeira, n?o ? nosso intelecto que responde ao est?mulo, concordando ou discordando, mas nosso temperamento ? quem julga e aceita ou recusa. Em outras palavras: confio mais no cora??o e no f?gado do que no c?rebro.

Muitas vezes dizemos que defendemos uma determinada ideia porque ela nos parece mais justa ou porque uma santa revolta nos guia em nossa atitude. Eu, c? com meus bot?es, acho que a causa primeira de nossa defesa desta ou daquela ideia ? da mesma ordem do gosto ou da mania, como acordar cedo ou tarde, apreciar ou n?o comida baiana, gostar ou n?o de festas, ter ou n?o medo de avi?o, sei l?. A cont?nua indisposi??o f?sica ou ps?quica, parodiando o grande poeta portugu?s Fernando Pessoa (s?culo 20), faz de n?s metaf?sicos, e n?o o contr?rio.

?s vezes, pra mim, um sorriso de uma mulher bonita numa manh? qualquer determina minha aceita??o do mundo, enquanto que uma alma azeda me torna um c?tico contumaz. Minhas ideias s?o como que escravas de um gesto doce ou de um corpo belo. Por temperamento sou um descrente, por sorte n?o sou um niilista: o mundo sempre me salva de mim mesmo. A f? (em qualquer coisa) n?o ? uma experi?ncia comum em minha vida. Muitas pessoas julgam a vida imposs?vel sem a f?. Acho que elas se enganam: a coragem e a gratid?o s?o muito mais importantes do que a f?.

Tenho um entendimento peculiar de Deus: para mim, Ele pede mais coragem e gratid?o do que f?. Mesmo nas narrativas do chamado Velho Testamento, como diz o cr?tico Erich Auerbach (s?culo 20) em seus “M?mesis”, n?o me parece que a f? seja uma quest?o essencial na rela??o entre o Deus de Israel e seus her?is, mas sim a capacidade de suportar o dia-a-dia, com seus ventos e sua poeira, de ser dobrado e amassado, e ainda assim, comer e beber com gosto, estar com a mulher amada, compartilhar as alegrias ef?meras.

O problema com a f?, pelo menos em grande parte, ? que ela se abre para cr?ticas como a de Nietzsche (s?culo 19): como diz, mais ou menos, o nosso fil?sofo do martelo, a f? desenha um mundo invis?vel e perfeito no al?m, como numa esp?cie de surto de metaf?sica para pobres, em troca de uma recusa da vida na sua nudez dilacerada, na sua elegante ferocidade. A beleza que nos cabe, penso (seguindo o fil?sofo do martelo), ? a que caminha sobre ossos.

Outra coisa que me aborrece na f? ? sua inveterada voca??o para a busca de retribui??o final: sendo bom, mere?o receber a felicidade em troca. A l?gica da retribui??o atrapalha a psicologia da gratid?o porque faz de n?s uns interesseiros. A possibilidade de vermos a gratid?o s? existe se soubermos de antem?o que n?o fizemos nada (ou pouco fizemos) por merecer o bem que recebemos.

Isso em nada anula nosso pequeno valor, apenas nos poupa da mesquinhez, nos devolve a vis?o daqueles que tornam nossa alegria um fato. O cineasta Lars Von Trier trabalhou esta quest?o da gratid?o, e nossa inaptid?o para ela, de forma brilhante em seu filme “Dogville”.

Lembremos da quest?o de abertura do drama: o “fil?sofo” Thomas Edison Jr. (filho do inventor da luz el?trica?) organiza uma discuss?o filos?fica com os moradores da pequena Dogville. Sua inten??o ? compreender a raz?o dos moradores daquela cidade serem incapazes de receber presentes e d?divas. Enquanto isso, uma jovem, bela e carinhosa mulher (Nicole Kidman) chega ? cidade. Seu nome ? Grace (Gra?a). A forma canalha com a qual ela ser? tratada, inclusive pelo jovem fil?sofo (eles fazem dela uma escrava), merecer? o castigo vindo pelas m?os do pai da bela Grace.

Estava eu voltando de um desses congressos, de saco cheio devido aos irritantes atrasos dos voos, quando, de repente, ao entrar no avi?o, ou?o o “bom dia” de uma bela comiss?ria. “Tomara que o voo esteja vazio, assim voc? ter? mais espa?o”, diz ela sorrindo. Acostumado com a simpatia vazia desses funcion?rios da avia??o, logo me espantei diante daquele rosto.

“O que voc? veio fazer em Curitiba?” Respondo seco: congresso. “Professor? Eu estudei hist?ria, mas abandonei e agora estou fazendo um curso de hist?ria ? dist?ncia.” Tr?s filhos: 18, 12 e 1 ano. Dez horas de voo por dia. Dei sorte: entre uma Pepsi Cola miser?vel e um biscoito sem gosto, fui visitado pela beleza em um voo de 40 minutos.

Luiz Felipe Pond?, na Folha de S.Paulo.

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