"O homem bom do bom tesouro do cora??o tira o bem, e o mau do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que est? cheio o cora??o". Lucas 6.45
A imagem do cora??o como met?fora para os pensamentos e sentimentos humanos ? muito antiga. A B?blia est? repleta de exemplos. Analisar de que maneira a met?fora do cora??o est? presente em nosso imagin?rio s?cio-religioso foi um dos temas da palestra proferida pelo te?logo Helmut Renders, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista, durante a 57? Semana Wesleyana, realizada de
“Cora??o aquecido” ? hoje uma express?o bastante utilizada no metodismo brasileiro
A met?fora do cora??o, presente j? nos tempos b?blicos, foi bastante valorizada na m?stica da Idade Medieval, destacando a miseric?rdia de Deus, acess?vel por interm?dio de Jesus. No protestantismo, a primeira apari??o significativa da figura do cora??o relaciona-se com Martinho Lutero e a integra??o do s?mbolo no seu emblema pessoal: a chamada "Rosa de Lutero" ou bras?o de Lutero. O s?mbolo era criado como anel de selo e Lutero o descreve a sua escolha da seguinte forma: A primeira coisa deve ser uma cruz, da cor preta no meio de um cora??o com a sua cor natural, a lembrar-me de que ? a f? no crucificado que nos salva. Uma pessoa s? pode tornar-se justa quando ele acredita com todo o seu cora??o. E embora esta cruz seja uma cruz negra que mortifica e que, propositalmente, causa dor, esta cruz n?o modifica a cor do cora??o, ou seja, a cruz n?o destruiu a natureza, n?o mata, mas, sim preserva a vida.
Para Lutero, o cora??o simboliza a f? crist?, e como podemos ver, esta f? ? diretamente relacionada com a cruz. Mas, a "mortifica??o" ? relacionada com o caminho da cruz e introduzida no projeto maior da preserva??o da vida. "F? e vida s?o os p?los do s?mbolo da cruz, ou seja, trata-se de uma supera??o das tradi?es mon?sticas e m?sticas com suas tend?ncias de abandono do mundo", diz Renders.
No s?culo XVII surge uma nova leitura, a partir da descoberta do cora??o como centro do sistema da circula??o sangu?nea por m?dicos alem?es, ingleses e franceses. ? justamente nestes pa?ses onde o cora??o se torna uma poderosa met?fora religiosa de novos movimentos religiosos. No catolicismo, surge a devo??o do "Sagrado Cora??o de Jesus", a partir das vis?es m?sticas da freira francesa Margareta Maria Alacoque, entre 1673 e 1675. "A contempla??o traz o perigo de promover o individualismo, de favorecer, unilateralmente, a rela??o ?ntima entre o eu – humano e o tu – divino, sobre desconsidera??o do tu – humano", alerta o professor.
No protestantismo, surge a "religi?o do cora??o" no s?culo XVII, especialmente no pietismo alem?o e, parcialmente, no puritanismo holand?s e ingl?s. O pietismo alem?o, explica Helmut, quis superar os impasses da ortodoxia luterana e sua tend?ncia da racionaliza??o da f?. Um hino do Duque Zinzendorf, l?der da Igreja Mor?via, descreve esta nova tend?ncia:
Unidos em comunh?o, cora??o ao lado de cora??o
Procurem descanso no cora??o de Deus
Deixem as suas chamas de amor
Ascender para o salvador.
Ele a cabe?a, n?s seus membros,
Ele a luz e n?s o seu brilho,
Ele o mestre e n?s sua irmandade,
Ele ? nosso e n?s somos dele
Deixe-nos ser t?o unidos,
Como tu ?s uno com o Pai,
At? que neste mundo,
N?o haver? mais nenhum membro ? parte…
Zinzendorf tinha 23 anos quando escreveu esta letra. Aqui, o cora??o ? relacionado com o envolvimento pessoal na causa da f? e na sua viv?ncia. O cora??o, lugar simb?lico do querer, precisa ser atingido; o intelecto segue posteriormente. Segundo Renders, comparado aos textos m?sticos da ?poca, esse poema j? se distingue por seu car?ter comunit?rio, embora ainda seja muito eclesioc?ntrico.
Cora?es em chamas
John Wesley, fundador do movimento metodista, foi influenciado pela espiritualidade mor?via. Foi numa reuni?o de mor?vios, enquanto algu?m lia um pref?cio de Lutero ? Ep?stola de Paulo aos Romanos, que ele sentiu seu cora??o "estranhamente aquecido". Mas a met?fora do cora??o de Wesley vai al?m dos limites individuais e eclesiais; transforma o mundo
| "A m?stica wesleyana n?o favorece, exclusivamente, a m?stica da uni?o humano-divina e jamais exclui a ?tica da comunh?o", destaca Helmut. |
Os irm?os Wesley, Charles e John escrevem na introdu??o de um hin?rio de 1739: A forma como S?o Paulo ensina a edifica??o das almas ? t?o distante da forma ensinada pelos m?sticos! A religi?o na qual esses autores nos edificariam ? religi?o solit?ria. "Se voc? quer ser perfeito, eles dizem, "n?o se preocupe com obras externas. ? melhor trabalhar virtudes e o querer. (…) Para eles, a contempla??o ? o cumprimento da lei, ainda mais, (trata-se de) uma contempla??o que consiste na cessa??o de todas as obras".
"Cora??o aquecido" ? hoje uma express?o bastante utilizada no metodismo brasileiro. Fala-se da "Igreja do cora??o aquecido" e do "povo do cora??o aquecido". Esta designa??o ?, genuinamente, brasileira. Outros movimentos de avivamento dentro do metodismo mundial, em parte parecidos com o do Brasil, tamb?m se referem a Aldersgate – por exemplo, "Minist?rio de Renova??o de Aldersgate" (Aldersgate Renewal Ministry), da Igreja Metodista Unida (EUA). Mas, n?o se fala da "igreja de Aldersgate".
M?stica relacional ou m?stica isolada?
Mas, qual ? a diferen?a entre uma Igreja que abriga um movimento e a identifica??o – ?nica ou predominante – da igreja como "igreja do cora??o aquecido"? Helmut Renders fez uma compara??o desta frase com o lema da Igreja Metodista, estabelecido em 1982: "Igreja Metodista: comunidade mission?ria a servi?o do povo". Diz o professor: "Este lema sinaliza como caracter?stica da Igreja dois c?rculos de rela?es: primeiro, a igreja ? comunidade, ou seja, relacional. A igreja ? forma social do corpo de Cristo, ? comunh?o. Segundo, pronuncia-se a rela??o igreja – humanidade, especificamente, o povo. Em compara??o, na frase povo do cora??o aquecido h? uma clara re-acentua??o do `exterior` para o `interior` e do `comunit?rio` para o individual: `povo` n?o se refere mais ao povo brasileiro, mas ao povo da igreja; no caso, o povo metodista. Podemos chamar isso uma tend?ncia mais eclesioc?ntrica, centrada no pr?prio movimento.
Renders conclui: "? t?o errado achar que muitos entendem `o povo do cora??o aquecido? como `o povo da contempla??o?, um povo que se "une no templo" para ter l? a uni?o m?stica com Deus? Se fosse s? isso, seria, como Wesley disse, uma piedade em perigo de esquecer as obras. Por isso, Wesley promove como m?stica A imita??o de Cristo, um guia espiritual de Thomas a Kempis, propondo uma m?stica p?-no-ch?o e de a??o."
“Rosa de Lutero” (emblema da Igreja Luterana) | A contempla??o de Cristo ensina o seu povo a enxergar Cristo na humanidade e encontrar Deus na cria??o, afirma o te?logo. Alguns chamam isso de contempla??o do pr?ximo e do mundo. Veja o que diz Wesley sobre esse relacionamento: `Se teu cora??o ? como o meu; se tu amas a Deus e toda humanidade, n?o fa?o mais perguntas. D?-me a tua m?o? (Serm?o Esp?rito Cat?lico). |
"? esta conc?rdia – `uni?o de cora?es? – que Wesley quer promover entre os seguidores de Cristo. Aqui, rela?es n?o s?o marcadas pelo suspeita ou pelo que se ouve falar por terceiros, mas, pela sinceridade, pela liberdade e pelo sincero interesse no outro".
Fazer parte do corpo de Cristo ? aprender a viver uma comunh?o corajosa que transparece tamb?m na vulnerabilidade, explica o te?logo. "A gra?a nos faz acordar, enfrentar a vida com e de cora??o. Juntando os nossos sentidos, enxergarmos com o cora??o, pensamos e agimos com o cora??o, tendo o estranho prazer de querer honrar o outro mais do que a n?s mesmos. Wesley ensina a ter `coragem?, um `cora??o disposto para agir? e desenvolver `a?es que prov?m do cora??o?, baseadas na confian?a no car?ter universal da gra?a de Deus. O Credo Social ? uma das altas express?es desta `coragem de ser?, desta coragem `de ser metodista?.
Helmut Renders destaca que o Credo Social Metodista, criado em 1908, expressa uma boa dose de ousadia, sim, mas jamais ? `n?o-espiritual?. "Podemos ver ent?o que a pr?pria met?fora do cora??o, justamente em portugu?s, n?o tem nada de isolado, mas conecta cada um e uma com a vida, com o outro, e o Grande Outro, Deus. Isso coincide com uma outra afirma??o de Wesley. A voca??o do metodismo n?o ? criar uma nova seita (se isolar), mas, reformar a na??o, especialmente, a igreja e espalhar a santidade sobre toda terra. Aqui, a paix?o pelo absoluto jamais se separaria da paix?o pelos `pequeninos?."
Fica, para a Igreja, a quest?o fundamental: qual ? nossa concep??o e pr?tica de espiritualidade? Uma m?stica relacional ou uma m?stica isolada? A met?fora do cora??o, certamente, pode simbolizar e representar as duas. A escolha ? nossa.