maoistas

Jean Birnbaum


O dispositivo ? familiar, no entanto algo destoa em rela??o aos com?cios tradicionais. Sim, estamos na Rue des Ecoles em Paris, em pleno Quartier Latin. Como em toda reuni?o de esquerda digna desse nome, a tribuna est? coberta por um tecido vermelho e tem no alto um alto-falante rouco -que a exig?idade da sala torna perfeitamente in?til. Sempre segundo o costume, o orador atrasa. Quando finalmente aparece, com seus ?culos imensos, colete listrado e cal?a de veludo, todos prendem a respira??o, com o olhar fixo naquelas longas m?os juvenis que n?o terminam de acariciar o texto a ser proferido.


At? aqui, tudo muito banal, dir?o. Mas a cena n?o se desenrola em Maio de 1968, e sim em dezembro de 2007, e o homem do dia chama-se Jean-Claude Milner, tem 66 anos, ? um ling?ista brilhante, autor de ensaios de estilo implac?vel e arrasador, o ?ltimo dos quais se intitula “Le Juif de Savoir” (O s?bio judeu, editado na Fran?a pela ed. Grasset, 2006). H? 40 anos esse te?rico glacial intimidava seus camaradas da Esquerda Prolet?ria (Gauche Prol?tarienne, ou GP na sigla em franc?s), principal organiza??o mao?sta na Fran?a no p?s-68.


Hoje ele se exprime diante dos fi?is no Instituto de Estudos Levinassianos, criado em 2000 ao redor de seu amigo Benny L?vy, antigo chefe da GP. Desde a morte deste em Jerusal?m em 2003, Milner assumiu o lugar do mestre no pequeno instituto. Naquela noite, o sil?ncio ? impec?vel quando, com uma voz soberana e fria, o gram?tico enuncia seu tema: “Sobre as artimanhas do universal, estudos de caso: Maio de 68 e o esquerdismo”.


  
Imagem de arquivo mostra cena dos dist?rbios de maio de 1968 em Par?s


Durante uma hora, Milner cita os bons autores (L?vi-Strauss, Foucault,
Sartre) para examinar o “encontro” entre Maio de 68 e o esquerdismo franc?s. De um lado, ele explica, Maio de 68 coloca a quest?o do presente: “Maio de 68 diz: a revolu??o n?o ? para os outros, para mais tarde. ? para n?s, aqui e agora”. De outro lado, ele prossegue, o esquerdismo redescobre a quest?o da “Hist?ria absoluta”, com H mai?sculo. Na intersec??o dos dois, existe a Esquerda Prolet?ria, que tenta conjugar o esp?rito de Maio e a “revolu??o em si” inventando uma pol?tica do absoluto. Ora, n?o ? por acaso, conclui o orador, que essa epop?ia se confunda com os nomes de Benny L?vy, de Robert Linhart, autor de um famoso livro intitulado “L'Etabli” (O estabelecido, ed. de Minuit, 1978), ou ainda de Pierre Goldman, rebelde e g?ngster assassinado em 1979: “Por interm?dio da Esquerda Prolet?ria, o esquerdismo franc?s tamb?m ? uma hist?ria judia”, declara Milner.


? uma piada? Em todo caso, na plat?ia ningu?m ri. Ao contr?rio, Jean-Claude Milner pode contemplar a express?o exaltada de seus ouvintes, alguns dos quais usam o quip?. Dentre eles, s? um punhado conheceu a ?poca das manifesta?es e das batalhas organizadas, antes de viver os dias seguintes que decepcionam, as madrugadas esverdeadas. Mas todos sabem o essencial: quando a esperan?a radical desmorona, resta apenas o desejo de infinito; quando a hist?ria n?o cumpre suas promessas, o absoluto procura outro nome.


Maio de 1968 – maio de 2008, da pol?tica ? espiritualidade: na grande fam?lia dos mao?stas franceses, um certo n?mero seguiu esse caminho. Sejam eles religiosos ou continuem se dizendo ateus, muitos passaram de uma cena marxista, onde a palavra que conta ? “revolu??o”, para uma cena metaf?sica, onde s? se fala em “convers?o”. De cara, ? o credo monote?sta que constitui o verdadeiro horizonte da radicalidade: de Mao a s?o Paulo, para os fil?sofos Guy Lardreau, Bernard Sich?re ou Alain Badiou; de Mao a Maom?, para seu camarada Christian Jambet, que aprendeu persa para mergulhar no estudo dos movimentos extremos no isl? xiita; e de Mao a Mois?s, para outros.


Ou melhor, “de Mois?s a Mois?s, passando por Mao”, como explicou o pr?prio Benny L?vy, que teria encarnado, melhor que ningu?m, essa passagem de um absoluto ao outro. “Muito cedo eu encontrei o Todo-Poderoso. No texto de L?nin, que foi tema de meu primeiro ano na Ecole Normale Sup?rieure (Escola Normal Superior), eu fichei os 36 volumes das 'Obras de Moscou'”, ele escreveu.


L?der carism?tico da Esquerda Prolet?ria, ele torna-se em seguida o secret?rio pessoal de Sartre e volta-se com ele para o estudo dos textos judeus, em meados dos anos 70, deixando os 36 tomos de L?nin pelos 20 volumes do Talmude. “Embaixo dos paralelep?pedos, a praia!”, haviam lan?ado os rebeldes de Maio de 68. “E se embaixo dos paralelep?pedos da pol?tica se escondesse a praia da teologia?”, retificou L?vy em 2002 em “Le Meurtre du Pasteur” (O assassinato do pastor, ed. Grasset-Verdier). Publicado na cole??o Figures dirigida por Bernard-Henri L?vy, essa obra tinha como subt?tulo “Cr?tica da vis?o pol?tica do mundo”, como que para homologar o div?rcio entre a pol?tica e o absoluto: n?o, nem tudo ? pol?tica; n?o, a condi??o humana n?o ? um problema cuja solu??o estaria na pol?tica.


Por essa amarga constata??o, os filhos do mao?smo franc?s pagaram um alto pre?o. Um quarto de s?culo antes de “Le Meurtre du Pasteur”, ali?s, outro livro j? havia feito o invent?rio: publicado na mesma cole??o, co-assinado por dois “ex” da GP, Guy Lardreau e Christian Jambet, “L'Ange” (O anjo) apareceu em 1976, ano da morte de Mao, no momento em que se afirmava um certo discurso antitotalit?rio. E se com freq??ncia consideramos esse ensaio como o manifesto dos “novos fil?sofos”, ? que “L'Ange” dizia adeus aos anos de milit?ncia, vinha encerrar de vez os anos “68”: “Hav?amos provado uma convers?o (…). Acredit?vamos ter chegado ao fundo: sabe esses tempos em que tudo faz falta, noites inteiras passadas a chorar baixinho, com poucas l?grimas, sobre o passado sem rem?dio (…). N?s nos retiramos para o deserto”, notavam Lardreau e Jambet nesse “guia dos desgarrados”, onde o descanso do engajamento pol?tico desembarcava em outra rebeli?o, esta espiritual.


Tudo isso para isto? No lugar da revolu??o cultural chinesa, o retorno ? antiga “revolu??o crist?”? L? onde Mao martelava que “o olho do campon?s v? justamente”, tratava-se simplesmente de afirmar, como fizeram os dois fil?sofos, zombando, que “o olho do padre v? justamente”? Seria f?cil demais, responde hoje Guy Lardreau. No in?cio dos anos 1970, esse “normalista” era um dos chefes da Esquerda Prolet?ria, ao mesmo tempo cuidando do jornal da organiza??o, “La Cause du Peuple” (A Causa do Povo, do qual Sartre era diretor), e sua se??o de cinema (onde trabalhou com Jean-Luc Godard). Depois de seu percurso militante, tendo Paris se tornado “intoler?vel” para ele, Lardreau instalou-se em Dijon.


Professor de classe preparat?ria (2? ano), agora ele mora em um hotel particular meio depauperado, reformado como gabinete filos?fico. Ao redor de sua mesa, as obras completas de Hegel e de Tom?s de Aquino; sobre ela, um velho cortador de papel, algumas notas rabiscadas. E os Salmos. Fascinado pelo Oriente crist?o, hoje Lardreau tem uma rela??o muito forte com “uma certa forma de rigor que chamamos de teologia”. E com a ora??o? “Eu lhe responderei como Jesus: n?o sei o que ? orar. Voc? ? bem suficiente ao dizer 'orar'…”, ele lan?a com um sorriso doloroso.


Sua m?e foi professora prim?ria. Seu pai ensinava matem?tica no col?gio. Nos anos 1930, este fora monarquista da A??o Francesa. Depois da guerra, “sobre a base da resist?ncia”, ele votou nos comunistas, permanecendo ao mesmo tempo ateu e “profundamente cat?lico”, explica Guy Lardreau. Ele mesmo, enquanto define o cristianismo como “a maior revolu??o da hist?ria da alma”, recusa que se fale sobre seu percurso como um retorno.


“Essa id?ia que fez o sucesso abomin?vel de 'L'Ange', pelo qual ainda me mordo os dedos”, ele confia. “O mal-entendido foi completo: leram o livro como uma esp?cie de queixa hip?crita, cobrindo com uma dignidade espiritual um puro e simples retorno ? casa paterna. Mas para mim era outra coisa: eu havia investido uma esperan?a m?xima em um campo em que ela se mostrou mal colocada. Ent?o foi preciso tentar compreender o que hav?amos buscado, a partir do momento em que isso n?o se soletrava mais com as palavras do discurso pol?tico. O que n?s chamamos de 'o Anjo' era uma figura tal que fez na hist?ria uma ruptura absoluta.”


Apesar de tudo, manter o horizonte de outro mundo poss?vel; a toda for?a, perpetuar a esperan?a de um “al?m” para o nosso tempo: no rastro de Maio de 68, cada um ? sua maneira, v?rios antigos mao?stas tentaram aceitar esse desafio. Ir ao encontro deles n?o ? somente espanar o retrato de uma gera??o no espelho de suas ilus?es passadas. ? tamb?m reconhecer, mesmo hoje, um fervor e uma virul?ncia intactos. Uma sede de absoluto, sobretudo, que diz muito sobre nossa ?poca, quando a quest?o religiosa voltou a ser central: “Quando a pol?tica est? em baixa, a teologia est? em alta. Quando o profano recua, o sagrado faz sua revanche. Quando a hist?ria se retarda, a eternidade al?a v?o”, lamentou recentemente o fil?sofo trotskista Daniel Bensa?d em um panfleto intitulado “Un nouveau th?ologien, B.-H. L?vy” (ed. Lignes).


Desse grande movimento de gangorra, os “marginais” do mao?smo franc?s s?o perfeitas testemunhas. Melhor: eles est?o, mais uma vez, na vanguarda.


Tradu??o: Luiz Roberto Mendes Gon?alves


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