RUBEM ALVES
Publicado na Folha de S.Paulo, 4 de mar?o de 2008
Duas ?ticas – a de princ?pios e a contextual. A ?nica pergunta a se fazer ?: “Qual delas est? mais a servi?o do amor?”
AS DUAS ?TICAS: a ?tica que brota da contempla??o das estrelas perfeitas, imut?veis e mortas, a que os fil?sofos d?o o nome de ?tica de princ?pios, e a ?tica que brota da contempla??o dos jardins imperfeitos e mut?veis, mas vivos -a que os fil?sofos d?o o nome de ?tica contextual.
Os jardineiros n?o olham para as estrelas. Eles nada sabem sobre os estrelas que alguns dizem j? ter visto por revela??o dos deuses. Como os homens comuns n?o v?em essas estrelas, eles t?m de acreditar na palavra dos que dizem j? as ter visto longe, muito longe…
Os jardineiros s? acreditam no que os seus olhos v?em. Pensam a partir da experi?ncia: pegam a terra com as m?os e a cheiram…
Vou aplicar a met?fora a uma situa??o concreta. A mulher est? com c?ncer em estado avan?ado. ? certo que ela morrer?. Ela suspeita disso e tem medo.
O m?dico vai visit?-la. Olhando, do fundo do seu medo, no fundo dos olhos do m?dico ela pergunta: “Doutor, ser? que eu escapo desta?”
Est? configurada uma situa??o ?tica. Que ? que o m?dico vai dizer?
Se o m?dico for um adepto da ?tica estelar de princ?pios, a resposta ser? simples. Ele n?o ter? que decidir ou escolher. O princ?pio ? claro: dizer a verdade sempre. A enferma perguntou. A resposta ter? de ser a verdade. E ele, ent?o, responder?: “N?o, a senhora n?o escapar? desta. A senhora vai morrer…” Respondeu segundo um princ?pio invari?vel para todas as situa?es.
A lealdade a um princ?pio o livra de um pensamento perturbador: o que a verdade ir? fazer com o corpo e a alma daquela mulher? O princ?pio, sendo absoluto, n?o leva em considera??o o potencial destruidor da verdade.
Mas, se for um jardineiro, ele n?o se lembrar? de nenhum princ?pio. Ele s? pensar? nos olhos suplicantes daquela mulher. Pensar? que a sua palavra ter? que produzir a bondade. E ele se perguntar?: “Que palavra eu posso dizer que, n?o sendo um engano -“A senhora breve estar? curada…'-, cuidar? da mulher como se a palavra fosse um colo que acolhe uma crian?a?” E ele dir?:
“Voc? me faz essa pergunta porque voc? est? com medo de morrer. Tamb?m tenho medo de morrer…” A?, ent?o, os dois conversar?o longamente -como se estivessem de m?os dadas …- sobre a morte que os dois haver?o de enfrentar. Como sugeriu o ap?stolo Paulo, a verdade est? subordinada ? bondade.
Pela ?tica de princ?pios, o uso da camisinha, a pesquisa das c?lulas-tronco, o aborto de fetos sem c?rebro, o div?rcio, a eutan?sia s?o quest?es resolvidas que n?o requerem decis?es: os princ?pios universais os pro?bem.
Mas a ?tica contextual nos obriga a fazer perguntas sobre o bem ou o mal que uma a??o ir? criar. O uso da camisinha contribui para diminuir a incid?ncia da Aids? As pesquisas com c?lulas-tronco contribuem para trazer a cura para uma infinidade de doen?as? O aborto de um feto sem c?rebro contribuir? para diminuir a dor de uma mulher? O div?rcio contribuir? para que homens e mulheres possam recome?ar suas vidas afetivas? A eutan?sia pode ser o ?nico caminho para libertar uma pessoa da dor que n?o a deixar??
Duas ?ticas. A ?nica pergunta a se fazer ?: “Qual delas est? mais a servi?o do amor?”