Aceitar a morte. Viver o luto. Abra?ar a vida
A morte tornou-se um tabu em nossa sociedade. Foi confinada ?s UTIs dos hospitais, escondida das crian?as, apagada das conversas… Numa cultura que valoriza o prazer e o sucesso, ningu?m gosta de se lembrar da exist?ncia de perdas. Mas elas existem e foram escolhidas pela pastora Blanches de Paula como tema de um doutorado em Ci?ncias da Religi?o. Al?m de te?loga, a Revda. Blanches ? psic?loga e professora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. Nessa entrevista, ela fala como a comunidade de f? pode se tornar uma rede de apoio a quem sofre, colaborando com a forma??o de uma sociedade mais saud?vel. O t?tulo desta entrevista ? o lema da organiza??o n?o governamental portuguesa A Nossa ?ncora (www.anossaancora.pt), criada para dar suporte psicol?gico a pais e m?es enlutados. Esse lema resume o desafio do ser humano diante da morte: percorrer todas as fases do luto at? aceitar a perda e abra?ar a vida, com gratid?o ao seu Criador.
Por que voc? escolheu o luto para tema de seu doutorado?
H? cinco anos tivemos um curso de aconselhamento sobre "tristeza e depress?o", promovido pelo Instituto de Pastoral da Faculdade de Teologia. Convidamos Maria J?lia Kov?cs, coordenadora do Laborat?rio de Estudos sobre a Morte da Universidade de S?o Paulo, para fazer a palestra de abertura. Ela falou sobre a dor da perda. Comecei a me interessar pelo tema e fui fazer um curso na USP como ouvinte. Na ?poca, eu estava pensando em fazer doutorado na ?rea de psicologia. Mas, depois, vi que seria interessante abordar este tema sob a ?tica das Ci?ncias da Religi?o.
As igrejas sabem como lidar com a quest?o do luto?
De maneira geral, temos muita dificuldade em lidar com perdas. Luto n?o ? s? quando morre algu?m; sofremos perdas desde que nascemos: perda de emprego, div?rcio, mudan?as repentinas. Tamb?m h? fases do desenvolvimento humano que envolvem perdas. Por exemplo: para chegar ? adolesc?ncia ? preciso perder a inf?ncia. Essas s?o quest?es existenciais que precisamos enfrentar. Saber lidar com o limite ? saud?vel, n?o s? do ponto de vista humano, mas tamb?m do crist?o. Infelizmente hoje h? tipos de teologia que incentivam mais o ganhar do que o aprender com as perdas e os sofrimentos.
Tamb?m tenho notado que as igrejas que passam por problemas de divis?es ou grandes perdas de membros t?m dificuldades em expor o trauma, discuti-lo abertamente. Passam-se 30 ou 40 anos e as pessoas ainda se lembram do ocorrido – n?o conseguem esquecer porque n?o tiveram condi?es de vivenciar o luto. Por isso, ? necess?rio trabalhar uma maneira de fazer um aconselhamento pastoral mais "comunit?rio" – toda a comunidade tem que refletir sobre o significado da perda para sua experi?ncia de f? e maturidade.
Como a comunidade pode ajudar o enlutado?
J? ouvi v?rios relatos de pessoas enlutadas que chegam a ter vergonha de demonstrar tristeza na igreja, pois ouvem frases do tipo "voc? tem que ter f?", "voc? tem que reagir".Mas o que a pessoa enlutada sente n?o ? pecado, ? uma rea??o esperada. Diante do luto ou da imin?ncia de perda, existem v?rios est?gios pelos quais se costuma passar: nega??o, raiva, barganha com Deus (negocia?es do tipo: "se eu sobreviver a esta doen?a, vou ser mais fiel"), depress?o e, finalmente, a aceita??o.
O que se pode fazer pelas pessoas que est?o passando por estas fases?
A quest?o de negar o que aconteceu? uma das mais desafiadoras: para enfrentar a realidade da morte de algu?m querido, por exemplo, ? importante se desfazer dos objetos da pessoa que faleceu. Algu?m da igreja pode ajudar nesta tarefa. Tamb?m n?o se deve ocultar a realidade das crian?as, usando express?es do tipo "seu pai viajou". A crian?a entende literalmente e ficar? esperando o pai voltar. Algumas igrejas metodistas mant?m a tradi??o de fazer o "culto em mem?ria". Acho que esse ? um ritual importante para a fam?lia. Quanto ? rea??o da revolta, ? preciso dar o suporte da escuta, sem repreens?o. Quando a pessoa consegue expor a raiva, ela tem condi?es de entrar em outra fase. ?s vezes orar ou ficar em sil?ncio junto com a pessoa ? a ?nica coisa que podemos fazer. ? preciso resgatar a dimens?o terap?utica da ora??o. Deixar que Deus atue da forma que Ele quiser. Isso ? importante para a pessoa que tenta "barganhar" com Deus. Ela precisa aprender a lidar com aquilo que n?o consegue mudar. Por isso, at? nossa forma de orar deve adquirir um significado novo. Orar ? dialogar!
E quanto ? depress?o, como ? poss?vel saber at? onde ela ? normal e quando j? se tornou "doentia"?
A m?dia de elabora??o de todo o processo de luto (segundo pesquisas na ?rea) ? de dois anos, variando bastante de pessoa a pessoa. Um estado depressivo que se estende por muito tempo pode, de fato, ter se tornado uma condi??o patol?gica, ou seja, uma doen?a. Nesse caso, ? necess?rio encaminhar a pessoa a um psic?logo ou m?dico psiquiatra – o que, para muitas pessoas, ainda ? um tabu. Tem gente que se esquece de que Deus tamb?m usa os talentos dos profissionais. Contudo, eu defendo que a Igreja continue prestando assist?ncia ? pessoa enlutada. O/a pastor/a pode ser tentado a fazer o encaminhamento quando n?o tem coragem de enfrentar a situa??o. H? casos de pessoas que tiveram assist?ncia da igreja nos primeiros dias depois da perda e depois se sentiram abandonadas. A presen?a pastoral em situa?es de perda ? salutar quando evocamos a dimens?o consoladora do cuidado de Deus.
Mas nem todo mundo tem aptid?o para visitar ou falar com o enlutado, n?o ??
Isso ? um fato que ocorre, tamb?m, no minist?rio de visita??o hospitalar: nem todo mundo tem voca??o ou foi devidamente preparado para saber o que falar, como se portar no ambiente hospitalar, etc. E para dar esse tipo de assist?ncia tamb?m ? necess?rio fazer uma auto-reflex?o sobre as pr?prias perdas. Uma iniciativa interessante de algumas igrejas ? a cria??o de grupos de suporte ao luto, muitas vezes coordenados por pessoas que j? passaram pelo problema. O grupo ? acionado quando morre algu?m da comunidade e fica dispon?vel para cuidar de todos os detalhes – desde ajudar no funeral at? lidar com seguro, invent?rio, compra de alimentos e suporte emocional. A comunidade de f? pode ajudar muito neste momento. Precisamos lembrar que nossa teologia ? baseada em Jesus Cristo, que chorou a perda do amigo L?zaro e se permitiu perder a pr?pria vida, por amor ? humanidade. Ao lidar com as perdas e com os sentimentos que envolvem esse fen?meno humano, Jesus nos encorajou a viver e descobrir a cada dia aquilo que podemos fazer hoje sem deixar para o amanh?. A? est? uma semente de esperan?a.
Suzel Tunes
 
								 
				


 
								 
								 
								