Restaura??o religiosa
Entrevista com Mark C. Taylor, publicada em Tr?pico, Id?ias de Norte a Sul, pela UOL, Folha de S?o Paulo, Brasil, Junho 2006.
"A religi?o nunca foi t?o poderosa ou t?o perigosa quanto hoje", diz o pesquisador americano Mark C. Taylor
Mark C. Taylor ? professor de religi?o no Williams College, em Massachusetts (EUA). Ali, ele conquistou o direito de decidir o que fazer com o seu tempo, de trabalhar em ?reas multidisciplinares do conhecimento e de pesquisar, ensinar e escrever. Devido a s?rios problemas com diabetes, que ele chama de desconstru??o do corpo, teve que ficar de licen?a m?dica nesse semestre e est? aproveitando para terminar seu terceiro livro em dois anos.
Por sete anos, ele aceitou dar aula todos os segundos semestres na Universidade de Columbia, em Nova York, nos departamentos de religi?o e arquitetura. Nem mesmo a possibilidade de dirigir o departamento de religi?o dessa universidade o fez pensar em sair do Williams. H? 30 anos ele se dedica ? religi?o e foi um dos primeiros pensadores a trabalhar com teologia e o pensamento de Jacques Derrida. Seu livro "Erring – A Postmodern A/Theology", lan?ado h? 20 anos tornou-se um "cl?ssico" no campo da teologia e da filosofia. Seu campo de a??o, contudo, n?o ? somente a teologia, mas tamb?m a filosofia da cultura e a religi?o em geral, especialmente a ocidental.
Segundo ele, a religi?o se encontra nos lugares menos ?bvios e onde menos se espera, seja nos jogos de futebol americano, no crescente com?rcio de unhas posti?as das meninas dos Estados Unidos, no controle remoto das televis?es, nas tatuagens, nos ossos que ficam como reminisc?ncias do corpo, nos avan?os bioinform?ticos, na literatura de William Gaddis, nas pinturas de Mark Tansey, na obra de arte de Michael Barney, Vito Acconti e Michael Heiser, nos epit?fios dos t?mulos de fil?sofos e nas conex?es da internet.
No ano passado, ele levou seus alunos de "religi?o e mundo moderno" para a Times Square, em Nova York, e ali disse que a no??o de Deus passou da religi?o para a est?tica e agora se concentra no mercado financeiro e das grandes corpora?es, muitas delas representadas naquela famosa pra?a. Seus companheiros de pensamento s?o os pensadores da filosofia continental europ?ia e o "novo" c?none de pensadores, especialmente franceses, do s?culo 20, como Lacan, Blanchot, Baudrillard, Bataille, Merleau-Ponty, Levinas, Deleuze, Michel de Certeau, Jabes e Kristeva.
Sua rela??o com as artes ? intensa. J? trabalhou com v?rios artistas e atualmente serve de consultor de museus, como o Museu de Artes de Boston, o MoMA (Museu de Arte Moderna) ou o Guggenheim, de Nova York. Seu interesse pela internet e por sistemas complexos fez ele criar o Herbert Allen Global Education Network, um centro de estudos que visa unir salas de aula entre v?rias partes do mundo.
Mark C. Taylor seria hoje o que Paul Tillich foi na primeira metade do s?culo XX, um pensador de fronteiras que, entre Hegel e Kierkegaard, tenta conectar filosofia, religi?o, artes, cultura, internet, sistemas complexos, pol?tica e economia. Taylor tem mais de 20 livros publicados. "A religi?o n?o vai desaparecer e, provavelmente, vai se tornar ainda mais poderosa nas pr?ximas d?cadas", diz, na entrevista abaixo, este pensador multidisciplinar dif?cil de ser definido..
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O senhor diz que os grandes movimentos filos?ficos que transformaram a maneira como compreendemos o mundo de hoje aconteceram entre Hegel e Kierkegaard. O senhor pode explicar por qu??
Mark C. Taylor: Hegel e Kierkegaard s?o dois fil?sofos muito influentes, cujo trabalho delineou caminhos alternativos de estar-no-mundo. Embora ambos insistissem que suas id?ias eram um complemento necess?rio aos princ?pios inicialmente articulados por Lutero, as suas perspectivas filos?ficas e teol?gicas s?o bastante diferentes. Hegel desenvolve um sistema abrangente, no qual tudo est? interconectado e inter-relacionado, enquanto Kierkegaard vai radicalizar a no??o de indiv?duo isolado, cujas ra?zes podem chegar at? o nominalismo medieval.
Depois deles, a hist?ria da filosofia e da teologia nos s?culos XIX e XX pode ser descrita como um p?ndulo oscilando entre essas duas posi?es. Mas a import?ncia do trabalho de Hegel e Kierkegaard n?o est? limitada apenas ? filosofia e ? teologia, mas se estende para outros dom?nios culturais e formas diferentes de organiza??o sociopol?tica.
No Brasil, as universidades, em geral, exceto as de confiss?o religiosa, n?o s?o simp?ticas ? religi?o em seus curr?culos. Acredito que nos Estados Unidos isso n?o seja diferente. Por que a religi?o tem sido t?o desprezada pela academia e com tanta freq??ncia, e por que essa situa??o se mant?m?
Taylor: A religi?o ?, sob muitos aspectos, o tema mais complicado para a universidade trabalhar. Muitos dos problemas nasceram da incapacidade de se distinguir adequadamente a pr?tica e o estudo da religi?o. Esse impasse ? criado pela compreens?o limitada da religi?o por parte daqueles que a defendem e tamb?m dos que a criticam. Vou voltar a esse tema na pr?xima quest?o.
Muitos acad?micos continuam comprometidos com as teorias de seculariza??o formuladas na d?cada de 60. Sob o ponto de vista dessas teorias, moderniza??o e seculariza??o s?o insepar?veis: as sociedades se modernizam e tornam-se mais seculares atrav?s de um processo que ? ao mesmo tempo inevit?vel e insepar?vel.
Obviamente, as coisas n?o aconteceram exatamente assim. A religi?o nunca foi t?o poderosa ou t?o perigosa quanto hoje. ? absolutamente essencial que o ressurgimento recente da religi?o n?o seja encarado como uma volta ?s formas pr?-modernas de cren?a e pr?tica. Ao contr?rio, o surgimento de formas mais conservadoras da religi?o ? um fen?meno global caracteristicamente p?s-moderno.
A religi?o n?o vai desaparecer e, provavelmente, vai se tornar ainda mais poderosa nas pr?ximas d?cadas. Portanto, a cria??o de an?lises mais sofisticadas e capazes de compreender melhor as nuances do que est? acontecendo ? de vital import?ncia. E o ponto de partida dessa investiga??o deve ser o reconhecimento de que a pr?pria seculariza??o ? um fen?meno religioso produto do juda?smo e do cristianismo.
O senhor diz com freq??ncia que a religi?o aparece onde ela ? menos evidente ou esperada. Poderia definir o que entende por religi?o e como abord?-la?
Taylor: A religi?o n?o ? s? o que acontece nas igrejas, nos templos e mesquitas. H? uma dimens?o religiosa em toda cultura. A arte, a literatura e a arquitetura modernas, por exemplo, nunca teriam se desenvolvido da mesma forma sem a profunda influ?ncia das v?rias tradi?es religiosas e espirituais.
A no??o de indiv?duo presente nos fundamentos da maior parte das teorias pol?ticas e econ?micas modernas foi definida pela primeira vez no protestantismo. Adam Smith desenvolveu sua an?lise dos mercados, que at? hoje continua balizando as pol?ticas econ?micas, pela apropria??o do conceito da m?o invis?vel de Calvino. ? importante expandir nosso conhecimento sobre a religi?o de forma a nos permitir determinar exatamente a sua influ?ncia na chamada cultura secular.
O senhor estudou a religi?o nos ?ltimos 30 anos. Quais foram as maiores mudan?as que o senhor presenciou durante esse tempo e qual a situa??o atual do estudo da religi?o?
Taylor: O estudo cr?tico da religi?o nunca foi t?o importante quanto ? hoje, e nunca foi t?o dif?cil. Por um lado, o politicamente correto metamorfoseou-se em "religiosamente correto". Alguns religiosos atacaram os acad?micos -?s vezes at? amea?ando com viol?ncia-, acusando-os de n?o respeitarem suas cren?as. Em casos extremos, os cr?ticos do estudo secular da religi?o insistem que s? os religiosos comprometidos com determinado credo est?o qualificados para ensinar a sua tradi??o religiosa.
Por outro lado, os cr?ticos tamb?m dizem que a religi?o ? epifenomenal e deve, portanto, ser reduzida a sistemas e processos mais b?sicos, como as infra-estruturas psicol?gica, sociol?gica e econ?mica. O que realmente precisamos hoje ? de uma abordagem do estudo da religi?o que seja multidisciplinar e comparativa. ? necess?rio utilizar a luz de cada uma das diferentes perspectivas metodol?gicas nas tradi?es religiosas que dialogam entre si.
Quais s?o os pensadores que o senhor julga importantes para o estudo da religi?o hoje?
Taylor: Acredito que os trabalhos mais interessantes para o estudo da religi?o est?o sendo feitos fora dessa ?rea de conhecimento. Eu identificaria tr?s ?reas: arte, literatura e ci?ncias biol?gicas. ? preciso enfatizar, no entanto, que nenhum desses pensadores necessariamente consideram seu trabalho como religioso ou at? mesmo relevante para a religi?o.
No campo das artes, artistas que fazem interven?es paisag?sticas, como Michael Heizer e James Turrel, est?o desenvolvendo projetos altamente ambiciosos e importantes. Outros artistas com trabalhos importantes s?o Richard Serra, Ann Hamilton, Matthew Barney, Joseph Beuys e Anselm Kiefer. Na literatura, dois autores merecem bastante aten??o: William Gaddis e Mark Danielewski. Finalmente, nas ci?ncias biol?gicas, eu citaria trajet?rias ao inv?s de indiv?duos.
Acredito que nas pr?ximas d?cadas a bioinform?tica ser? t?o importante quanto os computadores e as redes t?m sido no passado recente. ? medida que as pesquisas avan?am na biologia digital e vida artificial e se alcan?am novas tecnologias, a fronteira entre homem e m?quina ser? cada vez mais obscura. Esses avan?os t?m implica?es enormes para as tradi?es religiosas.
O senhor disse certa vez que vive em v?rios mundos e que o seu trabalho ? profundamente marcado por uma abordagem interdisciplinar abrangente. Dentre outras coisas, o senhor j? trabalhou com teologia, artes e arquitetura, cultura popular, m?dia, tecnologia e cibern?tica, o corpo e a carne, epit?fios de t?mulos e sistemas complexos, economia e mercado. Por que o senhor investiu em tantas dire?es?
Taylor: Acredito que a exist?ncia ? algo relacional – ser ? estar conectado. Para entender uma coisa ? necess?rio deslindar a teia de relacionamentos dentro da qual emerge o objeto de estudo. Por exemplo, n?o ? poss?vel compreender o neoliberalismo do capitalismo global sem entender, por exemplo, a doutrina da provid?ncia de Calvino e, por outro lado, os jogos de representa??o de pap?is on-line para m?ltiplos jogadores (MMORPGs).
A centelha criativa aparecesse quando aproximamos dois fen?menos aparentemente n?o relacionados entre si. A maneira pela qual o conhecimento se estrutura n?o ? imut?vel, mas reflete os modos de produ??o e reprodu??o existentes na sociedade. ? medida que passamos do capitalismo industrial para o capitalismo de consumo e finalmente ao capitalismo financeiro, a estrutura da realidade foi sendo modificada. O problema ? que as universidades n?o se transformaram junto com o mundo.
O modelo das universidades atuais foi formulado pela primeira vez por Kant, num artigo presciente publicado em 1789. Kant usou como modelo a universidade de produ??o em massa. Tente imaginar curr?culos e universidade estruturados como se fossem uma rede, ao inv?s de uma assembl?ia linear e voc? ter? uma id?ia das mudan?as de que a universidade necessita hoje.
Seus alunos adoram as suas aulas. Eu fui testemunha disso aqui na Universidade Columbia. Em 1995, o senhor ganhou o pr?mio Professor Universit?rio do Ano, concedido pela Funda??o Carnegie para o Aperfei?oamento da Doc?ncia. Como o senhor v? o seu trabalho como professor?
Taylor: Eu levo o ensino muito a s?rio. Na verdade, vejo a doc?ncia como minha voca??o. Sempre digo aos meus alunos que a rela??o professor-estudante ? ?tica: ambos t?m obriga?es, e nenhuma das partes consegue fazer o seu trabalho sem as contribui?es da outra. Freq?entemente, nas universidades onde se faz pesquisa, a atividade docente ? menosprezada. A dicotomia pesquisa/doc?ncia ? apenas ilus?ria, porque a pesquisa informa a atividade docente, que por sua vez alimenta a pesquisa. N?o h? nada mais recompensador do que o compromisso s?rio com estudantes inteligentes e interessados.
Como o senhor v? a rela??o pessoal do presidente George Bush com a religi?o. Estaria ele tentando criar uma teocracia?
Taylor: Eu tenho dito frequentemente que me preocupo mais com os que acreditam do que com os que n?o acreditam. Em maneiras diversas, as guerras religiosas do s?culo 21 s?o extens?es das guerras culturais dos anos 60. Para muita gente, que vai de George Bush ao papa Bento 16, os anos 60 nos introduziram em um caminho de relativismo que somente poder? ser corrigido pelo returno aos absolutos.
Penso que esses absolutos e essas certezas que eles advogam s?o altamente perigosos. Eu n?o creio que Bush esteja querendo criar uma teocracia, mas penso que o comprometimento religioso acr?tico que ele desenvolve tem afetado profundamente as pol?ticas internas e externas dos Estados Unidos, o que tem causado v?rios desastres.
Como a vis?o do presidente Bush a respeito da religi?o transformou a maneira pela qual os Estados Unidos conduzem a pol?tica e a economia tanto internamente quanto com o resto do mundo?
Taylor: Nos ?ltimos anos, o cen?rio pol?tico nos Estados Unidos foram transformados pelo que eu chamo de nova direita religiosa, que surgiu quando os protestantes e cat?licos conservadores uniram for?as, entre o final dos anos 60 e o in?cio da d?cada de 70. Os temas mais importantes eram o aborto, as ora?es nas escolas, a teoria da evolu??o e o Judici?rio federal.
Esses temas ainda orientam uma grande parte da agenda de Bush. ? importante entender que os protestantes conservadores sempre foram capazes de perceber como as novas tecnologias podem ser usadas para espalhar a sua f?. Isso come?ou com a imprensa e se disseminou pelo r?dio e a televis?o e agora alcan?a tamb?m a internet. Essa ast?cia tecnol?gica gerou um enorme poder financeiro e pol?tico. N?o h? nada que seja p?reo para isso na esquerda.
Como devemos entender o mundo depois dos atentados de 11 de Setembro? Como o senhor entende a id?ia de "terrorismo"?
Taylor: Como sugeri anteriormente, o terrorismo ? um fen?meno caracteristicamente p?s-moderno, uma rea??o ao crescente poder do capitalismo global. O terrorismo ? baseado numa ideologia de oposi??o, que joga o bem contra o mal. O que faz essa ideologia t?o perigosa ? o fato de o mundo estar cada vez mais interconectado. Quando se tem uma ideologia de oposi??o num mundo formado por teias e redes, os resultados podem ser desastrosos.
Com que olhos o senhor v? o futuro?
Taylor: Para ser bem honesto, ? dif?cil ser otimista em rela??o ao futuro. Os problemas que enfrentamos s?o grandes e h? pouca boa vontade em reconhec?-los ou empenho para solucion?-los. Acredito que as quest?es mais cr?ticas no s?culo XXI ser?o as ambientais, e em nenhum outro lugar do mundo isso ? t?o evidente quanto no Brasil. A destrui??o da floresta tropical amea?a a vida no planeta. As teias nas quais estamos emaranhados n?o s?o s? a internet e o capital global, mas s?o tamb?m as teias naturais, que uma vez danificadas n?o podem mais ser reconstru?das. Estamos nos aproximando rapidamente do ponto de inflex?o, que pode tamb?m trazer uma grande destrui??o.
Para encerrar nossa conversa, como o estudo da religi?o pode ajudar na resist?ncia ou criar alternativas ? situa??o pol?tica, econ?mica e religiosa atual?
Taylor: Pensamento e a??o, teoria e pr?tica, est?o inseparavelmente relacionadas. Precisamos desesperadamente de uma compreens?o de mundo que nos permita entender que tudo ? co-dependente e co-evoluiu. Se continuarmos como estamos agora, ? dif?cil imaginar algum futuro.
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Tradu??o de Tiago Chiavegatti
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Claudio Carvalhaes
? doutorando na ?rea de teologia, liturgia e artes no Union Theological Seminary e Universidade Columbia. ? autor de “Transgress?es: Religi?o, Performance e Arte” (ed. Emblema). Site: www.claudiocarvalhaes.com
