Artigo do colunista CONTARDO CALLIGARIS
Publicado na Folha de S?o Paulo, 29 de junho de 2006:
Cat?licos “do jeito deles”
Igrejas evang?licas de hoje s?o herdeiras do catolicismo de antes da Reforma
ACABAM DE ser publicados, pela Marcianum Press, os resultados de uma pesquisa encomendada pelo Patriarcado de Veneza e realizada pelo Observat?rio Sociorreligioso do Nordeste (nordeste da It?lia).Os dois volumes, sob o t?tulo “Fede e Libert?” (f? e liberdade), oferecem um retrato da f? e da religiosidade cat?licas nas regi?es do V?neto. Mas os resultados, confirmando pesquisas americanas de 2004, tornam-se indicativos de uma realidade que talvez valha, em geral, para os cat?licos do mundo ocidental contempor?neo.
No V?neto, quase toda a popula??o (perto de 90%) declara ser cat?lica, mas apenas 18% aderem ?s pr?ticas e ?s doutrinas obrigat?rias, enquanto os outros dizem ser cat?licos “do jeito deles” ou, no m?nimo, expressam “reservas”. A maioria dos entrevistados (66,5%) pensa que a miss?o da igreja seja assistir os pobres e os que sofrem, n?o legislar em mat?ria de moral nem ditar dogmas. Questionados se os padres deveriam definir claramente o que ? o bem e o que ? o mal, apenas 10% dos entrevistados respondem afirmativamente.
O curioso ? que os entrevistados podem questionar artigos de f? decisivos (por exemplo, levantar d?vidas sobre a ressurrei??o de Cristo) ou discordar radicalmente das indica?es da igreja quanto ? conduta sexual ou ao aborto, mas continuam se dizendo e se sentindo cat?licos. Alessandro Castegnaro, diretor do Observat?rio, comenta que, hoje, por serem cat?licos, os indiv?duos n?o deixam de escolher livremente “o que lhes parece plaus?vel em termos de cren?a e o que lhes parece certo em mat?ria de comportamento”.
A constata??o que se imp?e ? que, neste come?o do s?culo 21, o esp?rito do protestantismo ganhou. N?o ? que as igrejas reformadas (luterana, calvinista, anglicana etc.) estejam em alta enquanto o catolicismo declinaria, mas, como confirma a pesquisa veneziana, para quase todos, a religi?o ? cada vez mais uma quest?o ?ntima, privada. As formas do culto, as cren?as e as condutas do fiel s?o decididas sem a media??o da autoridade “infal?vel” de papa, padres e pastores: se o que fa?o ? pecado ou n?o, ? uma quest?o que se resolve numa conversa direta com Deus.
Segundo o estudo cl?ssico do soci?logo Ernst Troeltsch (sobre “o protestantismo e o mundo moderno”), o esp?rito do protestantismo, que “ganhou”, foi um dos grandes agentes da modernidade ocidental: gra?as a ele (ou tamb?m gra?as a ele), o indiv?duo e sua liberdade passaram a ser valores superiores ? obedi?ncia, ? tradi??o e ? pr?pria comunidade.
Segundo um ditado das plan?cies do centro-oeste americano (?rea com forte ascend?ncia luterana), a regra do bom crist?o ? “God and common sens”, “Deus e o bom senso”. Claro, o “bom senso”, que substitui assim a palavra do padre, do bispo etc., n?o ? um modelo de autonomia; ele se inspira nas convic?es morais compartilhadas pela maioria, mas (fato crucial) ele preserva a sensa??o de uma ades?o motivada por nossa pr?pria capacidade de pensar e julgar.
Ser? que essa transforma??o “protestante” da religiosidade cat?lica explica o crescente sucesso das igrejas evang?licas? Afinal, elas s?o igrejas reformadas, n?o ?? Penso o contr?rio. Grande parte dos evang?licos de hoje (bem diferentes dos protestantes cl?ssicos e dos “novos” cat?licos) s?o os advers?rios do esp?rito do protestantismo que deu forma ao mundo moderno: eles constituem igrejas que se prop?em como mediadoras exclusivas da palavra divina. Al?m das quest?es de doutrina, a pr?pria conduta moral n?o ? deixada ? decis?o do sujeito no seu di?logo com Deus: ela ? decidida por “cartilhas” que cobrem cada aspecto da vida, catequeses met?dicas, justificadas por cita?es sagradas (sempre dispon?veis: a B?blia ? um repert?rio variado e imenso). Assim, por exemplo, mostra-se aos fi?is que “a B?blia” pro?be o sexo oral, o uso de cigarros, a bebida alco?lica e a roupa colorida. Ou que, “segundo a B?blia”, quem n?o pagar o d?zimo ir? para o Inferno.
Em suma, os evang?licos, promotores de uma religiosidade normativa, t?m pouco a ver com o esp?rito do protestantismo; ao contr?rio, eles parecem ser os herdeiros dos cat?licos de antes da Reforma e da modernidade. Com uma diferen?a: freq?entemente, os mediadores que eles imp?em aos fi?is s?o desprovidos das qualidades humanas que eram um “efeito colateral” da vasta cultura dos padres do passado.
 
								 
				


 
								 
								 
								