Galil?ia e o Reino de Deus
Minha perspectiva ? que Antipas construiu uma capital nova em 19 E.C., chamou a cidade de Tiber?ades, e a colocou ?s margens do lago porque ele estava trabalhando na sua segunda tentativa para se tornar o Rei dos judeus, comercializando o lago e aumentando assim, em larga escala, sua base tribut?ria dele. Talvez ent?o, ele pensou, o novo imperador Tib?rio ficaria impressionado o bastante para conceder o que o antigo imperador Augusto havia negado. ? precisamente ent?o que duas vis?es alternativas do Reino de Deus em lugar do reino de Roma foram proclamadas contra ele, uma por Jo?o e outra por Jesus.
Considerem, ? guisa de introdu??o, estes dois textos abaixo, um de Jo?o e outro de Jesus, e imaginem como estas duas acusa?es poderiam ter descarrilado a esperan?a de Antipas em rela??o a uma alian?a matrimonial Herodiana-Asmon?ia popularmente aplaudida.Primeiro, em Marcos 6,18, Jo?o, o Batista “disse a Herodes, 'n?o te ? l?cito possuir a esposa de seu irm?o'". E depois, em Marcos 10,11-12, anunciou Jesus que, "Todo aquele que repudiar a sua mulher e desposar outra, comete adult?rio contra a primeira; e se essa repudiar o seu marido e desposar outro, comete adult?rio." Cr?tica ao matrim?nio dele por dois profetas populares n?o era exatamente o que Antipas tinha em mente em seus planos.
Jo?o e Jesus
Reino de Deus iminente ou presente?
Escatologia apocal?ptica. A palavra escatologia (do grego ?eschaton? ou ??ltimas coisas?) ? um termo nos ambientes de estudos b?blicos que se refere ? vis?o de Deus para uma terra ideal, para a id?ia de como o mundo seria se o governo fosse diretamente do pr?prio Deus (n?s poder?amos perguntar hoje: como seria uma economia divina?). O ?eschaton? denota aqui o ?Reino de Deus?, mas aqui na terra – e n?o depois e no c?u. Ent?o, escatologia n?o trata da destrui??o da terra, mas sobre sua transfigura??o, n?o ? sobre o fim do mundo, mas sobre o fim do mal, da injusti?a, da viol?ncia – e do imperialismo. Pense no ?eschaton? como a ?Grande Faxina /ordenamento Divino? do Mundo.
A palavra ?apocalipse? significa uma revela??o (de ?apokalypsis? grego ou latim ?revelatio?). Ent?o, escatologia apocal?ptica significa alguma revela??o especial sobre a Grande Faxina / Ordenamento de Deus do Mundo. E, naquele primeiro s?culo, seu conte?do normalmente era sobre sua imin?ncia, sobre como logo aconteceria, sobre se aconteceria na contemporaneidade.
? bastante infeliz que a express?o ?Reino do C?u? tenha entrado no vocabul?rio crist?o. No Segundo Testamento essa express?o ? usada mais de 30 vezes, mas s? por Mateus, enquanto Reino de Deus ? duas vezes mais freq?entemente usado e em muitos escritos: Marcos, Lucas, Jo?o, Atos e Cartas de Paulo. Al?m disso, o pr?prio Mateus tamb?m usa Reino de Deus aproximadamente cinco vezes. Este ?Reino do c?u?- em grego, de fato, seria Reino dos C?us – ? por demais mal interpretado como o Reino do futuro, do pr?ximo mundo, da vida ap?s a morte. Mas, para Mateus, ?c?u? era simplesmente um eufemismo para Deus, do mesmo jeito que ?s vezes a palavra ?casa? ? usada para ?morador?, como n?s costumamos falar: "a Casa Branca diz", quando queremos dizer “o Presidente diz". Em outras palavras, Reino de C?u significava exatamente o mesmo como ?Reino de Deus?. Mas o que foi isso?
O Reino de Deus era uma express?o normalmente utilizada para o que eu chamo a ?Grande Faxina /Ordenamento Divino? deste mundo. Era o que este mundo seria se e quando Deus se sentasse no trono de C?sar ou se e quando Deus morasse no pal?cio de Antipas.Isso est? muito claro nestas frases paralelas da Ora??o do Pai Nosso em Mateus 6,10: “Venha o Teu Reino, seja feita Tua vontade, na terra como no c?u." O Reino de Deus ? sobre a Vontade de Deus para esta terra aqui em baixo.E aquela presen?a terrestre combina, naturalmente, com tudo o que vimos at? agora em termos de expectativa da escatologia apocal?ptica. ? sobre a transforma??o deste mundo em santidade e n?o sobre a evacua??o deste mundo para o c?u.
Espero que esteja claro que o Reino de Deus ? 100% pol?tico e 100% religioso, completa e infalivelmente interligado ao mesmo tempo. Reino ? um termo pol?tico, Deus ? um termo religioso, e Jesus seria executado por causa do "de", em um mundo onde, para Roma, Deus se sentou j? no trono de C?sar porque C?sar era Deus. Uma vez um colega me contou que a diferen?a entre n?s era que eu considerava o Cristianismo das origens como um movimento pol?tico com implica?es religiosas enquanto ele o considerava como um movimento religioso com implica?es pol?ticas. Eu respondi que, ao contr?rio, minha posi??o era que o Cristianismo das origens era absolutamente ambas as coisas ao mesmo tempo porque ningu?m no primeiro s?culo fazia tal distin??o – lembrem-se das moedas de C?sar, onde estava dito que ele era DIVI F, quer dizer, DIVI FILIUS ou FILHO DE DEUS. Como algu?m poderia distinguir pol?tica e religi?o neste t?tulo? Para Jesus, o “Reino de Deus" levantou uma pergunta pol?tico-religiosa ou religiosa-pol?tica: A quem pertence o mundo e como, ent?o, deveria ser governado?
Jo?o e a escatologia. Jo?o era um escatologista que proclamou a chegada iminente do Deus vingador. Mais dia menos dia, mas certamente muito breve, Deus viria purificar e justificar uma terra que ficou velha em impureza e injusti?a. A teoria de Jo?o estava perto da teologia Deuteronom?stica, conforme j? desenvolvido na Parte II deste artigo. Naquela compreens?o, a opress?o pelo poder romano era um castigo por causa dos pecados de Israel, e aquela realidade pecaminosa estava impedindo o advento prometido de Deus. Ent?o, o que era preciso era um grande sinal de arrependimento, uma repeti??o popular da experi?ncia do Israel antigo, saindo do deserto, cruzando o Jord?o e entrando na terra prometida. E naquele processo eles/as se arrependeriam dos seus pecados ? medida que eram "batizados/as" ou imergiam no Jord?o, sua limpeza moral sendo simbolizada pela limpeza f?sica.
Uma multid?o cr?tica de pessoas arrependidas que tinha "retomado" a sua terra prometida prepararia pelo menos ou possivelmente at? mesmo aceleraria o inicio da "Grande Faxina de Deus". Enquanto isso, claro, e n?o importa o quanto n?o-violento isso era teoricamente, Jo?o estava armando bombas-rel?gio de expectativa escatol?gica por toda a parte da p?tria judia. Por isso, Antipas o executou. Note um aspecto muito importante daquela a??o. Se Antipas considerasse Jo?o uma amea?a violenta, ele tamb?m teria cercado o m?ximo de seguidores dele. Executando somente Jo?o, Antipas estava respondendo a algu?m que se op?s ao sistema romano, mas o fez n?o-violentamente.
N?s conhecemos Jo?o, o Batista, do Novo Testamento e das Antig?idades Judaicas de Fl?vio Josefo (18,116-19), mas cada fonte tem uma dificuldade principal. Por um lado, Flavio Josefo nunca quis admitir que aquela escatologia apocal?ptica judaica era uma for?a poderosa no s?culo I e assim menciona a execu??o de Jo?o muito vagamente. "Eloq??ncia que teve um efeito t?o grande no g?nero humano poderia conduzir a alguma forma de subleva??o”, ele nos informa, "pois parecia como se eles fossem guiados por Jo?o em tudo o que eles fizeram”. O conte?do daquela eloq??ncia nunca ? mencionado.
Por outro lado, os evangelhos can?nicos insistem de que a mensagem de Jo?o foi sobre o advento iminente de Jesus e n?o sobre o advento iminente do Deus apocal?ptico. Por exemplo, em Marcos 1,7-8, Jo?o proclama que "Depois de mim, vem o mais forte do que eu, de quem n?o sou digno de, abaixando-me desatar a correia das sand?lias. Eu vos tenho batizado com ?gua. Ele, por?m, vos batizar? com o Esp?rito Santo." Para Jo?o, o mais Poderoso era Deus, mas para Marcos era, obviamente, Jesus. Isso ? fica at? mais evidente na forte linguagem apocal?ptica Lucas 3,7-9.16:
Jo?o dizia ?s multid?es que vinham para ser batizadas por ele: "ra?a de v?boras! Quem vos ensinou a fugir da ira que est? para vir? Produzi, ent?o, frutos dignos do arrependimento e n?o comeceis a dizer em v?s mesmos: ?Temos por pai a Abra?o?. Pois eu vos digo que at? mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abra?o! O machado j? est? posto ? raiz das ?rvores; e toda a ?rvore que n?o produzir bom fruto ser? cortada e lan?ada ao fogo… Eu vos batizo com ?gua, mas vem aquele que ? mais forte do que eu, do qual n?o sou digno de desatar a correia das sand?lias; ele vos batizar? com o Esp?rito Santo e com o fogo."
Isso seria totalmente fora de lugar como uma profecia vinda da pessoa Jesus, mas se ajusta muito bem com a imagem inflamada de Jo?o de um Deus que j? est? vindo e que destruiria o mal de um mundo atolado nele. Esta linguagem utilizada em 3,7-9.16 vem do pr?prio Jo?o, mas ? humanamente suavizada pela pr?pria inser??o de Lucas 3,10-14:
"E as multid?es o interrogavam: ?Que devemos fazer?? Respondia-lhes: ?Quem tiver duas t?nicas, reparta-as com aquele que n?o tem, e quem tiver o que comer, fa?a o mesmo?. Alguns publicanos tamb?m vieram para ser batizados e disseram-lhe: ?Mestre, que devemos fazer?? Ele disse: ?N?o deveis exigir nada al?m do que vos foi prescrito?. Os soldados, por sua vez, perguntavam: ?E n?s, que precisamos fazer?? Disse-lhes: ?A ningu?m molesteis com extors?es; n?o denuncieis falsamente e contentai-vos com vosso soldo?".
De certa forma, Jo?o estava certo de que o Reino de Deus era iminente, mas n?o viria como ele ou muita gente esperava.
Jesus e a Escatologia. Um das coisas mais certas que n?s sabemos de Jesus ? que ele foi batizado por Jo?o. O que d? essa seguran?a ? o nervosismo crescente que o fato provoca ? medida que voc? avan?a na leitura do Evangelho de Marcos, passa por Mateus e Lucas e chega a Jo?o.
O texto de Marcos ? totalmente sucinto na descri??o do fato em 1,9: “Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio ? Nazar? da Galil?ia e foi batizado por Jo?o no Jord?o." Mas o batismo ? ofuscado imediatamente pela vis?o de Jesus em 1,10-11: “E, logo ao subir da ?gua, ele viu os c?us se rasgando e o Esp?rito, do jeito de uma pomba, descer at? ele, e uma voz veio dos c?us: ?Tu ?s o meu Filho amado, em ti me comprazo?".
O evangelho de Mateus ? muito mais defensivo. Jesus chega para o batismo em 3,13, mas sua intera??o com Jo?o acontece em 3,14-15: “Mas Jo?o tentava dissuadi-lo, dizendo: ?Eu ? que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?? Jesus, por?m, respondeu-lhe: ?Deixa estar por enquanto, pois assim nos conv?m cumprir toda a justi?a?. E Jo?o consentiu." Depois disso, em Marcos, a vis?o e revela??o divina obscurecem o batismo.
O evangelho de Lucas ? quase evasivo e a menos que voc? lesse cuidadosamente poderia n?o perceber qualquer men??o do batismo do pr?prio Jesus em 3,21: “Ora, tendo todo o povo recebido o batismo, e no momento em que Jesus, tamb?m batizado, achava-se em ora??o, o c?u se abriu…" Neste caso, por?m, a revela??o de Deus n?o ? acompanhada por qualquer vis?o de Jesus.
O evangelho de Jo?o apresenta em 1,26-33 a solu??o final. Ele omite qualquer men??o do batismo de Jesus por Jo?o e insiste, ao inv?s, no testemunho do Batista sobre Jesus como “Filho de Deus” e “Cordeiro de Deus”. Jo?o, o Batista explicitamente identifica Jesus (e n?o Deus) com aquele que ? maior do que ele do qual ele tinha profetizado que estava chegando em breve. Agora, a vis?o celestial ajuda ao Batista a identificar Jesus e n?o a Jesus a reconhecer sua pr?pria identidade: “Jo?o testemunhou, 'Vi o Esp?rito descer, como uma pomba vindo do c?u, e permanecer sobre ele. Eu n?o o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com ?gua disse-me: ?Aquele sobre quem vires o Esp?rito descer e permanecer ? o que batiza com o Esp?rito Santo?".
Mas tudo isso s? enfatiza que Jo?o batizou Jesus e que, ent?o, Jesus tinha aceitado, pelo menos originalmente, a mensagem de Jo?o do advento iminente de um Deus apocal?ptico e vingador. Por exemplo, isso explicaria porque Jesus defende Jo?o, o profeta calejado pelo do deserto, em contraste com Antipas, o cani?o agitado pelo vento, em Lucas 7,24-27, citando de Malaquias 3,1:
"Tendo partido os enviados de Jo?o, Jesus come?ou a falar ?s multid?es a respeito de Jo?o: ?Que fostes ver no deserto? Um cani?o agitado pelo vento? Mas que fostes ver? Um homem vestido com vestes finas? Ora, os que usam vestes suntuosas e vive em del?cias est?o nos pal?cios reais. Ent?o, o que fostes ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais do que um profeta. ? dele que est? escrito: ?Eis que eu envio meu mensageiro ? tua frente, ele preparar? o teu caminho diante de ti?".
Mas o pr?ximo verso em 7,28 reitera essa aprova??o na primeira parte e logo a degrada drasticamente na segunda parte: “Eu lhe falo, entre esse nascido de mulheres ningu?m ? maior que o Jo?o; ainda o menor no reino de Deus ? maior que ele”.
J? que eu considero que ambas as declara?es vieram do Jesus hist?rico, eu penso que Jesus come?ou aceitando a teologia de Jo?o da imin?ncia de Deus, mas, precisamente por causa do que aconteceu a Jo?o, ele mudou para uma teologia da presen?a de Deus. Jo?o esperou o advento de Deus, mas ao inv?s disso veio a cavalaria de Antipas. Jo?o foi executado e Deus ainda n?o veio como uma presen?a vingadora. Talvez, pensou Jesus, Deus n?o agisse assim porque Deus n?o fosse assim?Por isso, a pr?pria proclama??o de Jesus insistia que o Reino de Deus n?o era iminente, mas presente, j? estava aqui em baixo, nesta terra e, embora devesse ser consumado no futuro, era presente agora e n?o s? uma realidade de um futuro iminente.
Mas Jesus dificilmente poderia ter feito tal reivindica??o espetacular sem imediatamentejuntar outra a ela. Algu?m pode falar eternamente sobre a imin?ncia futura do Reino e, a menos que a pessoa seja tola o bastante para dar uma data precisa, n?o se pode comprovar se ela est? certa ou errada. N?s estamos fazendo nada al?m de esperar que Deus aja, e al?m das atitudes preparat?rias de f?, esperan?a e ora??o, n?o h? nada mais que n?s possamos fazer. Quando Deus agir, ser?, presumivelmente, como um ?flash? de raio divino para al?m de todas as categorias de tempo e lugar.Mas reivindicar um Reino j? presente aqui e agora exige alguma evid?ncia, e a ?nica que Jesus poderia ter oferecido ? esta: n?o ? que n?s estamos esperando por Deus, ? Deus que est? esperando por n?s. O Reino presente ? um ?eschaton? colaborativo entre o mundo humano e o mundo divino. A Grande Faxina /Ordenamento Divino ? um processo interativo com um come?o aqui e agora e uma consuma??o futura (breve ou longa?) a ser consumado. Aconteceria sem Deus? N?o. Aconteceria sem crentes? N?o. Para ver a presen?a do Reino de Deus, disse Jesus, lhe fa?o um convite: venha, veja como n?s vivemos e ent?o viva do mesmo jeito.
Finalmente, ? claro que o Deus-presente de Jesus n?o era como o Deus-iminente de Jo?o, um Deus vingador e violento. Escatologia participativa significou a resist?ncia n?o violenta ? brutalidade comum da civiliza??o humana em geral e ? brutalidade padr?o do imperialismo romano em particular.
Jo?o e Jesus:
Reino de Deus como monop?lio ou franquia?
Havia, por?m, outra diferen?a principal entre Jo?o e Jesus, al?m daquela em rela??o ? imin?ncia ou presen?a do Reino de Deus na terra. E era quase uma necess?ria concomit?ncia dessaprimeira distin??o. Eu coloco isto deste modo: Jo?o teve um monop?lio, mas Jesus teve uma franquia. Jo?o era “o batista" ou “o Batizador” – esse era o seu apelido tanto nas Antiguidades Judaicas de Fl?vio Josefo como no Novo Testamento. N?o havia muitos lugares de para a realiza??o do batismo Jord?o acima ou abaixo, e voc? simplesmente ia para o lugar mais pr?ximo de sua pr?pria casa. Voc? ia at? Jo?o e s? at? ele. Ent?o, para p?r um fim ao movimento dele, Antipas s? teve que executar Jo?o. Poderia ficar na mem?ria, haveria muita saudade e tristeza por uma ou duas gera?es, mas, como o movimento dependia da vida de Jo?o, ele acabou com a morte dele. Uma vez mais, eu penso, Jesus observou e aprendeu. E aqui ? como a estrat?gia dele diferiu da de Jo?o.
Em primeiro lugar, vamos lembrar do que j? foi dito acima. Jesus anunciou a presen?a do Reino de Deus convidando todos/as a vir e ver como ele e os seus companheiros/as j? tinham aceitado isto, j? tinham entrado nele e j? estavam vivendo nele. Para experimentar o Reino, afirmou ele, "venha, veja como n?s vivemos e ent?o viva como n?s". Mas isso presume um programa comunit?rio, presume que Jesus n?o tinha somente uma vis?o ou uma teoria, mas uma pr?xis e um programa – e um programa n?o s? para ele, mas para outros/as tamb?m. O que foi isso?
Basicamente foi isto: curar o doente, comer com esses que voc? curou e anunciar a presen?a do Reino naquela mutualidade de vida. Voc? pode ver este programa comunit?rio funcionando em textos como Marcos 6,7-13 e Lucas 9,1-6 ou Mateus 10,5-14 e Lucas 10,1-11. Note algumas caracter?sticas incomuns desses textos. Primeiro, o pr?prio Jesus n?o se estabelece em Nazar? ou Cafarnaum e envia os/as companheiros/as dele para que tragam as pessoas at? ele, como se ele fosse o monopolizador do Reino. Segundo, ele pede para que os/as outros/as fa?am exatamente o que ele est? fazendo – curando doentes, comendo com eles/as e proclamando a presen?a do Reino. Terceiro, ele n?o lhes diz que curem em nome dele ou at? mesmo que rezem a Deus antes de curarem – nem ele reza antes da cura. Isso ? realmente bastante extraordin?rio e s? pode ser explicado pela presen?a do Reino e pela participa??o das pessoas nisto – se voc? est? no Reino presente aqui e agora, voc? j? est? em uni?o com Deus e pode agir de acordo com esse fato.
A l?gica do programa do Reino de Jesus ? a mutualidadede cura – como o poder espiritual b?sico – e a comensalidade – como o poder f?sico b?sico – , compartilhadas livre e abertamente. Este processo construiu comunidade de partilha a partir da base como uma alternativa positiva e poss?vel em rela??o ? comunidade romana de gan?ncias e ac?mulos que Antipas estabeleceu a partir das elites. Est? bastante claro que a comida ? a base material de vida e que o controle de quem come ou n?o determina todo o resto. At? mesmo se n?s normalmente formos bem nutridos, perceberemos nossa depend?ncia absoluta da comida acima de qualquer outra coisa – depois que isso ? sanado, h? muitas outras necessidades, mas em primeir?ssimo lugar vale: sem comida n?o h? vida. Assim, comer como preenchimento da necessidade f?sica b?sica est? relativamente claro e compreendido, mas curar com um poder espiritual ? muito mais dif?cil de se entender.
Est? bastante explicitado que Jesus era um grande curandeiro e, apesar disso, n?s explicamos esta capacidade, sua veracidade parece seguramente firme. No seu famoso livro de 1980, Pacientes e Curandeiros no Contexto da Cultura, Arthur Kleinman enfatizou que (p?g. 72):
Um axioma fundamental da antropologia m?dica ? a dicotomia entre dois aspectos da doen?a: mal (disease) e enfermidade (illness). Mal refere-se a um mau funcionamento de processos biol?gicos e/ou psicol?gicos, enquanto o termo "enfermidade" se refere ? experi?ncia e ao significado psicossociais do mal percebido. "Enfermidade" inclui respostas pessoais e sociais secund?rias ao mau funcionamento prim?rio do "mal" (disease) no estado fisiol?gico ou psicol?gico do indiv?duo (ou ambos)…. Visto desta perspectiva, "enfermidade" ? o processo de moldar o "mal" em comportamentos e experi?ncias. ? criada atrav?s de rea?es pessoais, sociais, e culturais ao "mal".
E curar (curing) est? relacionado com o mal (disease), enquanto sanar (healing) est? relacionado com enfermidades (illness). ?s vezes, um mal pode ser curado, mas muito freq?entemente o m?ximo poss?vel ? sanar a enfermidade que o cerca. Isso era especialmente verdade para a medicina tradicional, mas ainda hoje continua sendo verdade, especialmente quando diz respeito a doen?as cr?nicas ou terminais.
Quando eu tentei explicar aquela distin??o entre curar males e sanar enfermindades aos meus estudantes da Universidade de De Paul, Chicago, EUA, eles normalmente entendiam o complexo mal/enfermindade em termos psicossom?ticos e interpretavam sanando como um fen?meno psicol?gico. Eles tiveram muita dificuldade em compreend?-lo como aquilo que eu chamo um complexo sociossom?tico at? que eles assistiram ao filme Philadelphia em 1993. Voc? recordar? que Tom Hanks fazia o papel de Andrew Beckett, um advogado gay demitido pela sua empresa de advocacia porque descobriram que foi infectado pelo v?rus HIV por causa de sua homossexualidade. Todos os meus estudantes entenderam que o mal de Beckett n?o poderia ser curado, mas, no desenrolar da hist?ria, eles tamb?m puderam ver que a enfermidade dele estava sendo sanada pelo apoio do seu companheiro/namorado, da sua fam?lia, e pelo sucesso do processo no tribunal contra a discrimina??o ilegal da sua antiga empregadora. Curar n?o era poss?vel, mas sanar ainda era. N?o tudo, com certeza, mas tamb?mn?o nada.
Aqui temos mais um exemplo encontrado no livro escrito por Arthur Kleinman, seu estudo em 1988 sobre "As narrativas das enfermindades". Ele cita "Lenore Light? uma animada m?dica internista de 29 anos que vem de fam?lia negra de classe m?dia alta e trabalha em uma cl?nica ?num bairro de periferia? ", que, diz ela, “tornou-me radical: ? um encontro revolucion?rio com as fontes sociais de mortalidade e morbidez e depress?o. Quanto mais eu vejo, mais chocada eu fico do qu?o ignorante eu tenho sido, insens?vel ?s causas sociais, econ?micas, e pol?ticas da enfermidade”. Aqui o exemplo espec?fico dela:
Hoje eu vi uma m?e obesa e hipertensa de seis filhos. Nenhum marido. Nenhum apoio familiar. Nenhum trabalho. Nada. Um mundo de viol?ncia e pobreza brutalizadoras, drogas e gravidez na adolesc?ncia em alto ?ndice e – e somente crises que entorpecem tudo, uma ap?s outra e ap?s outra. O que eu posso fazer? O que adianta recomendar uma dieta de pouco sal, adverti-la para controlar a sua press?o: ela est? debaixo de tamanha e real press?o exterior, o que importa a press?o interna? O que a est? matando ? o mundo dela, n?o o corpo dela. Na realidade, o seu corpo ? o produto do seu mundo. Ela ? uma velha baleia enorme, acima do peso e disforme, que ? uma sobrevivente das circunst?ncias e da falta de recursos e das mensagens cru?is que mandam consumir e continuar tocando a vida, imposs?vel de ouvir e n?o sentir raiva dos limites do seu mundo. Ei, o que ela precisa n?o ? medicamento, mas uma revolu??o social.
Ela tem raz?o: "o que n?s precisamos ? preven??o, n?o os bandaids que eu vivo todo diacolocando sobre profundas feridas internas (pp. 216-17). Sanar ? o que acontece dentro de uma comunidade de preocupa??o m?tua, apoio e ajuda, e isso ? uma realidade s?ciossom?tica e n?o simplesmente uma realidade psicossom?tica.
A sana??o da enfermidade por Jesus e seus companheiros/as deve ser entendida dentro de um esquema de revolu??o social preventiva, nos termos de Light, e numa estrutura do Reino da Grande Faxina Total e C?smica de Deus do mundo, nos termos pr?prios dele que s?o ainda mais radicais. N?o se surpreenda, naturalmente, se um grande e famoso curandeiro, como Jesus ou Escul?pio , tem a reputa??o de ressuscitar os mortos, isso ?, enf?tica e triunfalmente fazer surgir vida a partir da (de dentro) morte. N?o se surpreenda se voc? achar isto nos an?ncios dos seus seguidores/as, mas fique muito surpreso/a se voc? achar isto nos testemunhos dos seus pacientes.
Ep?logo
A relev?ncia do "a escava??o a partir do inferno"
Eu termino esta reflex?o partilhando uma descoberta arqueol?gica que eu n?o uso como prova hist?rica, mas como s?mbolo dram?tico do foco de Jesus no Mar da Galil?ia, sob o governo de Herodes Antipas no final dos anos 20 E.C. ? um emblema triste do que era a vida de pescadores e de camponeses, uma vez que Antipas havia criado a Romaniza??o atrav?s da urbaniza??o para a comercializa??o no Lago de Tiber?ades. ? uma resposta simb?lica ?s tr?s perguntas de abertura deste cap?tulo e especialmente ? pergunta por que o Jesus est? t?o freq?entemente nos arredores do lago.
No ver?o de 1985, uma seca muito severa tinha abaixado o n?vel de ?gua no Mar da Galil?ia e exposto praias ao longo da toda a sua margem. Ao final de janeiro de 1986, dois irm?os, Moshe e Yuval Lufan do Kibutz Ginosar, a noroeste do lago, descobriram um grande barco afundado na lama no lado oposto de Migdal ou Magdala, logo ao sul da casa deles.
Em seu livro lan?ado no ano 1995, "Sea of Galilee Boat: An Extraordinary 2000 Year Old Discovery" (O Barco do Mar da Galil?ia: Uma extraordin?ria descoberta de dois mil?nios), Shelley Wachsmann registra em detalhes fascinantes o penoso trabalho de restaura??o diligente de Orna Cohen do Laborat?rio de Conserva??o do Instituto de Arqueologia da Universidade Hebraica. As madeiras do barco tinham a consist?ncia de papel?o molhado ou queijo macio, e n?o era nenhum milagre que Wachsmann chamou isto “a escava??o do inferno” (p?g. 59). Foi uma d?cada de trabalho de restaura??o at? que o barco pudesse ser colocado em exibi??o p?blica no Kibutz Ginnosar no Museu Yigal Allon, nomeado para honrar o soldado-estadista israelita que tinha vivido uma vez naquele lugar.
O barco original tinha aproximadamente 8 ? metros de comprimento por aproximadamente 2 ? de largura, tinha mastro e velas, usava dois remos grandes, um em cada lado, e um grande leme dobradi?o na popa. ? certamente o tipo de barco de trabalho duro imaginado nessas hist?rias sobre Jesus e os Doze no lago. Wachsmann lhe d? a seguinte data: “o barco existiu aproximadamente entre 100 a.C e 67 d.C. No momento eu n?o acredito que seja poss?vel ser mais preciso do que isso" (p?g. 349). Eu cito isto aqui n?o como prova ou argumento para o que estava acontecendo no lago no tempo de Jesus, mas eu uso isto como um s?mbolo ou emblema das dificuldades que apareceram por causa do processo de comercializa??o do lago no per?odo de Herodes Antipas durante a vida p?blica de Jesus.
Primeiro, a constru??o do barco envolveu o aproveitamento do material de barcos mais velhos. Depois, sua quilha era metade de madeira de cedro – muito adequada, masreaproveitada – e metade de madeira de jujuba bastante inadequada. Al?m disso, sua superf?cie tinha sido substitu?da n?o com material novo, mas com peda?os e pedacinhos ajuntados. “A obra continha um total de pelo menos sete tipos diferentes de madeira”, escreveu Wachsmann. “Quem quer que tenha constru?do este barco tinha realmente raspado o fundo do barril para conseguir madeira" (p?g. 252). Finalmente, um dia ele n?o estava mais ? prova das ondas. Seu mastro, vela, remos, o poste central e o poste na popa foram retirados para futuro uso em outros barcos. E todos os pregos de ferro foram tirados da madeira para uso futuro. Foi retirado ent?o para fora do ancoradouro de Magdala e afundado num cemit?rio para barcos que nem serviam mais como fonte de pe?as para reparos em outros barcos.
Em termos da pergunta que abriu esta discuss?o, ent?o, Jesus passou seu tempo no e aos arredores do lago porque foi precisa e especificamente ?s margens do Mar da Galil?ia que a radicalidade do Deus de Israel confrontou a normalidade da civiliza??o de Roma sob o reinado de Herodes Antipas nos anos 20 do primeiro s?culo E.C.
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