Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

Entrevista Pierucci Folha de São Paulo


"Novas igrejas fazem promessas irrealizáveis"

FSP, 21/06/2006

Um dos principais especialistas em religião do país, o sociólogo e professor da USP Antônio Flávio Pierucci afirma que o desapontamento dos fiéis com suas igrejas é proporcional às expectativas levadas por eles aos templos após a conversão. "Um dos trunfos da Universal é o discurso da prosperidade, da promessa de melhora nesse mundo. É um risco calculado delas, porque segura os fiéis mais com essa coragem do que prometendo coisas mais vagas."

Em mais de uma hora de entrevista, ele explicou o processo de transformação de algumas igrejas no país, que passam a fazer promessas cada vez mais específicas para atrair novos integrantes.

Folha: Há alguma explicação para esse desencanto de fiéis evangélicos com a igreja a ponto de eles irem r Justiça dizerem que foram enganados?

Antônio Flávio Pierucci: A palavra correta nao é desencanto, mas desapontamento. Desencantamento é a desmagificação. Quando deixa de ser mágica e se torna uma religião de preceitos éticos. É a perda da magia e crescimento da metafísica e da moral. Há um dado sociológico anterior de que as pessoas procuram uma nova igreja. A fragilidade, o desapontamento, está aí. Uma coisa é nascer católico e se decepcionar com o catolicismo em determinado momento. Mas o catolicismo não te promete, naquele momento, que, se você for à igreja, eles podem te dar algo. É comum que isso aconteça com pessoas que passam por dificuldades, uma aflição moral ou física, e não procure apenas uma religião. A pessoa ouve uma promessa para a qual ela vai se dirigir. E ela vai com tudo. Em seguida, ela é estimulada a fazer um gesto de desapego muito grande de algo que ela tem. Nao existe vínculo institucional mais consolidado com aquela igreja caso haja um fracasso, uma frustração.

Folha: A tradição, então, é um fator importante?

Pierucci: O fator importante é a conversão, porque a pessoa está indo para uma nova religião. É como quando você está numa relação amorosa, encontra uma mulher que te promete o mundo, você abandona tudo e ela te abandona. Aí a frustração é muito grande. É uma relação nova. A pessoa deixa a religião na qual ela estava e isso exige um esforço grande. Ela nao largou só aquele dinheiro, ela deixou relações que ela tinha. Isso é um fator psicossocial.

Folha: Sao fiéis novos?

Pierucci: Há um segundo fator. A partir do momento em que a Igreja Universal se consolidar e ter a segunda ou a terceira geração, as pessoas vão saber que as promessas não são tão facilmente alcançadas.

Folha: Estarão mais acostumadas com o modus operandi da religião?

Pierucci: Sim, estarão mais acostumadas com aquele Deus. Porque vai rotinizar a vida naquela religião. A novidade também é que você não tinha na tradição religiosa brasileira igrejas que fossem baseadas numa teologia, que é a da prosperidade, que falava tão explicitamente de dinheiro. Isso é um dos grandes trunfos da Universal, e começa a ser copiado por outras igrejas e algumas facções da Assembléia de Deus já tem esse discurso da prosperidade, uma promessa de melhora neste mundo. Antes as religiões eram somente milenaristas. Esperavam o milênio. Agora não, a promessa é aqui e agora. É imediata e é com todas as letras. Voce quer um carro, é um carro que você pede a Deus. Você vê depoimentos específicos nas igreja, gente que diz que tinha um carro velho, seguiu a religião e conseguiu. Isso faz com que você, digamos, dê nome aos bois de maneira mais direta e a frustraçao é mais nítida também. É um risco calculado das igrejas, porque segura as pessoas muito mais com essa coragem do que prometendo coisas mais vagas.

Folha: Quando se tornar mais rotineira, será o fim da Universal?

Pierucci: Não. Veja a Assembléia, que se tornou uma igreja dinástica. Como não tem celibato, que não separa a propriedade da igreja com a do bispo, voce corre o risco de que a propriedade da igreja seja também do pastor. O filho dele se casa, tem filhos. Voce cria o direito de herança. Nao é vocação. Deixa de ser o carisma da pessoa e passa a ser do clã. A Universal talvez nao tende a se tornar assim, porque tem outra estrutura.

Folha: Mas elas vao se transformar?

Pierucci: Elas vao se tornar mais milenaristas, prometer as coisas para o futuro. É a história das religiões de modo geral. Elas transformam o que Freud chama de sublimação. A promessa material se transforma. Se não, não tem fim a frustração das pessoas se você prometer a terra prometida amanhâ...É como o socialismo. O que está acontecendo com o PT? Você tem que consolar as pessoas de outra forma. Imagine que você tem um câncer. Ouvi a história de um freqüentador da "Deus é Amor" que achava que o Davi Miranda [presidente da igreja] ia curá-lo de um câncer externo no peito. Mas, como esse câncer não sarava, a igreja dizia que ele nao recebia a cura mas, que, se ele prestasse atenção, já tinha recebido muita coisa de Deus. Ele conheceu Deus, que estava mais próximo. Ou seja, você sublima os bens materiais, que passam a ser espirituais. E começam a prometer o céu. É como o povo judeu: estava mal, mas estava de olho na terra prometida.

Folha: O senhor acredita que esses processos possam fazer com que as igrejas sejam mais cautelosas com suas promessas?

Pierucci: Na época da formulação do novo Código Civil, em 2002, havia a intenão de que fossem formulados direitos religiosos dos fiéis, que não poderiam ser ofendidos pelo pastor ou pelo pai-de-santo, não poderiam ser chamados de travesti ou de puta. A idéia era obrigar as igrejas a cumprir essas normas, que todas teriam de ter estatutos aprovados em assembléias e que, se cometessem algum ilícito que não constava no estatuto, o fiel não poderia ser punido. Só que aí começou uma correria para que nada disso fosse instituído.

Folha: Muita gente acredita que as igrejas, por terem a liberdade de culto assegurada na Constituição, acabam se tornando terrenos para a arbitrariedade.

Pierucci: As igrejas possuem privilégios enormes, inclusive fiscais, que criam um espaço enorme para arbitrariedades. Principalmente se o fiel for lá chegado a idiotia. Eles se apavoram com ameaças do pastor, por exemplo, que falam em maldição e que a vida dele vai andar para trás se deixar a igreja. Ou seja: a pessoa é livre para entrar mas depois, pressionada, nao consegue sair. As igrejas tem televisões, rádios, editoras. Seus líderes enriquecem e ninguém é investigado. De onde vem esse dinheiro? Não há hoje no Brasil uma lei que regule a vida religiosa, não há uma agência nacional das religiões, nem sequer uma orientação, uma idéia de direitos e deveres. E o Estado também nao pode ou nao quer controlar.

Folha: As pessoas estão ficando menos propensas a entrar nesse tipo de religião?

Pierucci: Podemos falar que existem dois movimentos. O primeiro é o de que as pessoas andam mais abertas a experiências espirituais, ao assédio das religiões. Mas há também uma outra lógica: a de que as pessoas estão passando por um avanço de caráter de juridificação da vida. Interessante que esses esforços vão se somando, as pessoas pressionam, lutam, reclamam e, um dia, a pressão chega. Assim como um dia as pressões resultaram em códigos, como de advogados, consumidores e dos bancos, elas começam a pedir que a lei valha para o padre, o pastor ou o cardeal. E como um discurso técnico, jurídico do debate, assim como o discurso médico passou a ser adaptado à vida das pessoas. É um processo de civilização.

Folha: Qual a diferença do discurso das promessas entre as igrejas?

Pierucci: As religiões sao, basicamente, promessas. O mais engraçado é que, no início, elas dependem muito de que seus líderes e fundadores sejam muito carismáticos, que convençam as pessoas de que as promessas vão ser cumpridas. Prometem coisas irrealizáveis, o céu e a terra. E as pessoas acreditam. Promessas iniciais são mais mágicas, sao tangíveis demais. Esse é o calcanhar de aquiles. No princípio, Deus dará. Basta confiar. O culpado pela não-realização vai ser você. Se você é paralítico e nao consegue andar sem a muleta, o culpado é vocÊ que nao acreditou em Deus. A tua fé que é frouxa.

Folha: Como é isso no judaísmo, por exemplo?

Pierucci: O judaísmo é mais desse mundo, mas não promete aqui e agora. É aqui, mas no futuro. Tem aí a volta do Messias, a reconquista de Jerusalém, Jerusalém capital do mundo etc. É uma recompensa pelo sofrimento do povo judeu, uma recompensa coletiva. Por isso é uma religião étnica. A muçulmana é menos étnica, porque se tornou uma religião que converte, mas fala em árabe. Ela é híbrida. No início, a promessa de Maomé era a da conquista do mundo, não de almas. É diferente do cristianismo. Ela toma terra e deixa as pessoas com as crenças delas, desde que paguem taxas maiores ao Estado muçulmano.

Folha: Qual a promessa muçulmana?

Pierucci: Sao duas. Glória e poder neste mundo e no céu.

Folha: Aqui e agora?

Pierucci: Não é agora, mas é aqui. É o grande islã, é o mundo islâmico. Uma religião de riqueza e terra, feudal e ligada à conquista territorial.

Folha: Qual é o chamativo?

Pierucci: Ela promete: ?se você crer que Alá é o único Deus e que Muhamad é o seu profeta, você está salvo e entrará no reino dos céus?. Se você morrer numa guerra santa como soldado para conquistar o mundo pela glória de Islã, você terá direito a prazeres do céu, às virgens e toda a história.

Folha: E do cristianismo?

Pierucci: É a religião do sofrimento. Se amar o próximo, não precisa ser do seu sangue, da sua etnia. É uma religião universal em pleno sentido da palavra, sem reservas.

Folha: É uma religião de conversao?

Pierucci: Sim. Se você, como na época das conquistas coloniais, conquistar determinado território, você tem também que conquistar as almas do lugar: vai batizar e tudo mais.

Folha: Qual a promessa do cristianismo?

Pierucci: Promete o outro mundo.

Folha: Mas diferente do islamismo?

Pierucci: Sim. É a contemplação da glória divina. Promete a inversão: os últimos serão os primeiros. Os mais pobres, que mais sofreram, vão contemplar a Deus porque são bem-aventurados.

Folha: As neopentecostais podem ser chamadas de religiões que lidam com a magia?

Pierucci: As neopentecostais sao híbridas. Religiões que não são mágicas são como as protestantes, que se apegam menos ao ritual, que não tem sacramentos, não tem a confissão. Como o luteranismo, para quem Deus está sempre atrás do pecador, pedindo para que se arrependa. Tem a idéia da predestinação, como o calvinismo, as igrejas presbiterianas. É a idéia da predestinação, que Deus é soberano e, quando cria os homens, decide quem ele ama.

Folha: Por isso ele nasce rico?

Pierucci: Nao é tao mecânico. É que, como você não sabe da predestinaçao, voce é que deve se convencer a si mesmo que está salvo. E aí deve trabalhar, trabalhar e colher a prosperidade. Nao é você que se salva. Deus já te salvou, nao foi você. Se você leva vida de risco, de pecado, azar o seu: vai mostrar pra você mesmo que nâo está escolhido. Há sempre a dúvida. Existe a predestinação e a confirmação. Quem enriquece comprova pelo trabalho, pelo esforço, que foi escolhido.

Folha: Há alguma passagem bíblica que inibe o fiel a se voltar contra a própria fé ou sua igreja?

Pierucci: A Bíblia está cheia de passagens que diz: se você não crer, será infiel, principalmente no Antigo Testamento. Moisés conduz o povo pelo deserto, as pessoas vão se decepcionando, começam a adorar o bezerro de ouro. Começam a fazer pregações contra Deus, a blasfêmia. O livro de Jó conta a história da tentativa do demônio de fazer Jó desacreditar da vontade divina. Ele sofre e passa por uma série de provas. E não desiste. Perde seus bens, depois seus entes queridos. Depois a saúde. Mas, no auge do seu sofrimento, segue confiando em Javé. Passou por todas as provações.


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