“Novas igrejas fazem promessas irrealiz?veis”
FSP, 21/06/2006
Um dos principais especialistas em religi?o do pa?s, o soci?logo e professor da USP Ant?nio Fl?vio Pierucci afirma que o desapontamento dos fi?is com suas igrejas ? proporcional ?s expectativas levadas por eles aos templos ap?s a convers?o. “Um dos trunfos da Universal ? o discurso da prosperidade, da promessa de melhora nesse mundo. ? um risco calculado delas, porque segura os fi?is mais com essa coragem do que prometendo coisas mais vagas.”
Em mais de uma hora de entrevista, ele explicou o processo de transforma??o de algumas igrejas no pa?s, que passam a fazer promessas cada vez mais espec?ficas para atrair novos integrantes.
Folha: H? alguma explica??o para esse desencanto de fi?is evang?licos com a igreja a ponto de eles irem r Justi?a dizerem que foram enganados?
Ant?nio Fl?vio Pierucci: A palavra correta nao ? desencanto, mas desapontamento. Desencantamento ? a desmagifica??o. Quando deixa de ser m?gica e se torna uma religi?o de preceitos ?ticos. ? a perda da magia e crescimento da metaf?sica e da moral. H? um dado sociol?gico anterior de que as pessoas procuram uma nova igreja. A fragilidade, o desapontamento, est? a?. Uma coisa ? nascer cat?lico e se decepcionar com o catolicismo em determinado momento. Mas o catolicismo n?o te promete, naquele momento, que, se voc? for ? igreja, eles podem te dar algo. ? comum que isso aconte?a com pessoas que passam por dificuldades, uma afli??o moral ou f?sica, e n?o procure apenas uma religi?o. A pessoa ouve uma promessa para a qual ela vai se dirigir. E ela vai com tudo. Em seguida, ela ? estimulada a fazer um gesto de desapego muito grande de algo que ela tem. Nao existe v?nculo institucional mais consolidado com aquela igreja caso haja um fracasso, uma frustra??o.
Folha: A tradi??o, ent?o, ? um fator importante?
Pierucci: O fator importante ? a convers?o, porque a pessoa est? indo para uma nova religi?o. ? como quando voc? est? numa rela??o amorosa, encontra uma mulher que te promete o mundo, voc? abandona tudo e ela te abandona. A? a frustra??o ? muito grande. ? uma rela??o nova. A pessoa deixa a religi?o na qual ela estava e isso exige um esfor?o grande. Ela nao largou s? aquele dinheiro, ela deixou rela?es que ela tinha. Isso ? um fator psicossocial.
Folha: Sao fi?is novos?
Pierucci: H? um segundo fator. A partir do momento em que a Igreja Universal se consolidar e ter a segunda ou a terceira gera??o, as pessoas v?o saber que as promessas n?o s?o t?o facilmente alcan?adas.
Folha: Estar?o mais acostumadas com o modus operandi da religi?o?
Pierucci: Sim, estar?o mais acostumadas com aquele Deus. Porque vai rotinizar a vida naquela religi?o. A novidade tamb?m ? que voc? n?o tinha na tradi??o religiosa brasileira igrejas que fossem baseadas numa teologia, que ? a da prosperidade, que falava t?o explicitamente de dinheiro. Isso ? um dos grandes trunfos da Universal, e come?a a ser copiado por outras igrejas e algumas fac?es da Assembl?ia de Deus j? tem esse discurso da prosperidade, uma promessa de melhora neste mundo. Antes as religi?es eram somente milenaristas. Esperavam o mil?nio. Agora n?o, a promessa ? aqui e agora. ? imediata e ? com todas as letras. Voce quer um carro, ? um carro que voc? pede a Deus. Voc? v? depoimentos espec?ficos nas igreja, gente que diz que tinha um carro velho, seguiu a religi?o e conseguiu. Isso faz com que voc?, digamos, d? nome aos bois de maneira mais direta e a frustra?ao ? mais n?tida tamb?m. ? um risco calculado das igrejas, porque segura as pessoas muito mais com essa coragem do que prometendo coisas mais vagas.
Folha: Quando se tornar mais rotineira, ser? o fim da Universal?
Pierucci: N?o. Veja a Assembl?ia, que se tornou uma igreja din?stica. Como n?o tem celibato, que n?o separa a propriedade da igreja com a do bispo, voce corre o risco de que a propriedade da igreja seja tamb?m do pastor. O filho dele se casa, tem filhos. Voce cria o direito de heran?a. Nao ? voca??o. Deixa de ser o carisma da pessoa e passa a ser do cl?. A Universal talvez nao tende a se tornar assim, porque tem outra estrutura.
Folha: Mas elas vao se transformar?
Pierucci: Elas vao se tornar mais milenaristas, prometer as coisas para o futuro. ? a hist?ria das religi?es de modo geral. Elas transformam o que Freud chama de sublima??o. A promessa material se transforma. Se n?o, n?o tem fim a frustra??o das pessoas se voc? prometer a terra prometida amanh?…? como o socialismo. O que est? acontecendo com o PT? Voc? tem que consolar as pessoas de outra forma. Imagine que voc? tem um c?ncer. Ouvi a hist?ria de um freq?entador da “Deus ? Amor” que achava que o Davi Miranda [presidente da igreja] ia cur?-lo de um c?ncer externo no peito. Mas, como esse c?ncer n?o sarava, a igreja dizia que ele nao recebia a cura mas, que, se ele prestasse aten??o, j? tinha recebido muita coisa de Deus. Ele conheceu Deus, que estava mais pr?ximo. Ou seja, voc? sublima os bens materiais, que passam a ser espirituais. E come?am a prometer o c?u. ? como o povo judeu: estava mal, mas estava de olho na terra prometida.
Folha: O senhor acredita que esses processos possam fazer com que as igrejas sejam mais cautelosas com suas promessas?
Pierucci: Na ?poca da formula??o do novo C?digo Civil, em 2002, havia a inten?o de que fossem formulados direitos religiosos dos fi?is, que n?o poderiam ser ofendidos pelo pastor ou pelo pai-de-santo, n?o poderiam ser chamados de travesti ou de puta. A id?ia era obrigar as igrejas a cumprir essas normas, que todas teriam de ter estatutos aprovados em assembl?ias e que, se cometessem algum il?cito que n?o constava no estatuto, o fiel n?o poderia ser punido. S? que a? come?ou uma correria para que nada disso fosse institu?do.
Folha: Muita gente acredita que as igrejas, por terem a liberdade de culto assegurada na Constitui??o, acabam se tornando terrenos para a arbitrariedade.
Pierucci: As igrejas possuem privil?gios enormes, inclusive fiscais, que criam um espa?o enorme para arbitrariedades. Principalmente se o fiel for l? chegado a idiotia. Eles se apavoram com amea?as do pastor, por exemplo, que falam em maldi??o e que a vida dele vai andar para tr?s se deixar a igreja. Ou seja: a pessoa ? livre para entrar mas depois, pressionada, nao consegue sair. As igrejas tem televis?es, r?dios, editoras. Seus l?deres enriquecem e ningu?m ? investigado. De onde vem esse dinheiro? N?o h? hoje no Brasil uma lei que regule a vida religiosa, n?o h? uma ag?ncia nacional das religi?es, nem sequer uma orienta??o, uma id?ia de direitos e deveres. E o Estado tamb?m nao pode ou nao quer controlar.
Folha: As pessoas est?o ficando menos propensas a entrar nesse tipo de religi?o?
Pierucci: Podemos falar que existem dois movimentos. O primeiro ? o de que as pessoas andam mais abertas a experi?ncias espirituais, ao ass?dio das religi?es. Mas h? tamb?m uma outra l?gica: a de que as pessoas est?o passando por um avan?o de car?ter de juridifica??o da vida. Interessante que esses esfor?os v?o se somando, as pessoas pressionam, lutam, reclamam e, um dia, a press?o chega. Assim como um dia as press?es resultaram em c?digos, como de advogados, consumidores e dos bancos, elas come?am a pedir que a lei valha para o padre, o pastor ou o cardeal. E como um discurso t?cnico, jur?dico do debate, assim como o discurso m?dico passou a ser adaptado ? vida das pessoas. ? um processo de civiliza??o.
Folha: Qual a diferen?a do discurso das promessas entre as igrejas?
Pierucci: As religi?es sao, basicamente, promessas. O mais engra?ado ? que, no in?cio, elas dependem muito de que seus l?deres e fundadores sejam muito carism?ticos, que conven?am as pessoas de que as promessas v?o ser cumpridas. Prometem coisas irrealiz?veis, o c?u e a terra. E as pessoas acreditam. Promessas iniciais s?o mais m?gicas, sao tang?veis demais. Esse ? o calcanhar de aquiles. No princ?pio, Deus dar?. Basta confiar. O culpado pela n?o-realiza??o vai ser voc?. Se voc? ? paral?tico e nao consegue andar sem a muleta, o culpado ? voc? que nao acreditou em Deus. A tua f? que ? frouxa.
Folha: Como ? isso no juda?smo, por exemplo?
Pierucci: O juda?smo ? mais desse mundo, mas n?o promete aqui e agora. ? aqui, mas no futuro. Tem a? a volta do Messias, a reconquista de Jerusal?m, Jerusal?m capital do mundo etc. ? uma recompensa pelo sofrimento do povo judeu, uma recompensa coletiva. Por isso ? uma religi?o ?tnica. A mu?ulmana ? menos ?tnica, porque se tornou uma religi?o que converte, mas fala em ?rabe. Ela ? h?brida. No in?cio, a promessa de Maom? era a da conquista do mundo, n?o de almas. ? diferente do cristianismo. Ela toma terra e deixa as pessoas com as cren?as delas, desde que paguem taxas maiores ao Estado mu?ulmano.
Folha: Qual a promessa mu?ulmana?
Pierucci: Sao duas. Gl?ria e poder neste mundo e no c?u.
Folha: Aqui e agora?
Pierucci: N?o ? agora, mas ? aqui. ? o grande isl?, ? o mundo isl?mico. Uma religi?o de riqueza e terra, feudal e ligada ? conquista territorial.
Folha: Qual ? o chamativo?
Pierucci: Ela promete: ?se voc? crer que Al? ? o ?nico Deus e que Muhamad ? o seu profeta, voc? est? salvo e entrar? no reino dos c?us?. Se voc? morrer numa guerra santa como soldado para conquistar o mundo pela gl?ria de Isl?, voc? ter? direito a prazeres do c?u, ?s virgens e toda a hist?ria.
Folha: E do cristianismo?
Pierucci: ? a religi?o do sofrimento. Se amar o pr?ximo, n?o precisa ser do seu sangue, da sua etnia. ? uma religi?o universal em pleno sentido da palavra, sem reservas.
Folha: ? uma religi?o de conversao?
Pierucci: Sim. Se voc?, como na ?poca das conquistas coloniais, conquistar determinado territ?rio, voc? tem tamb?m que conquistar as almas do lugar: vai batizar e tudo mais.
Folha: Qual a promessa do cristianismo?
Pierucci: Promete o outro mundo.
Folha: Mas diferente do islamismo?
Pierucci: Sim. ? a contempla??o da gl?ria divina. Promete a invers?o: os ?ltimos ser?o os primeiros. Os mais pobres, que mais sofreram, v?o contemplar a Deus porque s?o bem-aventurados.
Folha: As neopentecostais podem ser chamadas de religi?es que lidam com a magia?
Pierucci: As neopentecostais sao h?bridas. Religi?es que n?o s?o m?gicas s?o como as protestantes, que se apegam menos ao ritual, que n?o tem sacramentos, n?o tem a confiss?o. Como o luteranismo, para quem Deus est? sempre atr?s do pecador, pedindo para que se arrependa. Tem a id?ia da predestina??o, como o calvinismo, as igrejas presbiterianas. ? a id?ia da predestina??o, que Deus ? soberano e, quando cria os homens, decide quem ele ama.
Folha: Por isso ele nasce rico?
Pierucci: Nao ? tao mec?nico. ? que, como voc? n?o sabe da predestina?ao, voce ? que deve se convencer a si mesmo que est? salvo. E a? deve trabalhar, trabalhar e colher a prosperidade. Nao ? voc? que se salva. Deus j? te salvou, nao foi voc?. Se voc? leva vida de risco, de pecado, azar o seu: vai mostrar pra voc? mesmo que n?o est? escolhido. H? sempre a d?vida. Existe a predestina??o e a confirma??o. Quem enriquece comprova pelo trabalho, pelo esfor?o, que foi escolhido.
Folha: H? alguma passagem b?blica que inibe o fiel a se voltar contra a pr?pria f? ou sua igreja?
Pierucci: A B?blia est? cheia de passagens que diz: se voc? n?o crer, ser? infiel, principalmente no Antigo Testamento. Mois?s conduz o povo pelo deserto, as pessoas v?o se decepcionando, come?am a adorar o bezerro de ouro. Come?am a fazer prega?es contra Deus, a blasf?mia. O livro de J? conta a hist?ria da tentativa do dem?nio de fazer J? desacreditar da vontade divina. Ele sofre e passa por uma s?rie de provas. E n?o desiste. Perde seus bens, depois seus entes queridos. Depois a sa?de. Mas, no auge do seu sofrimento, segue confiando em Jav?. Passou por todas as prova?es.
