Entrevista Vera Paiva sexualidade

Com fervor e autonomia



ENTREVISTA: VERA PAIVA – Professora do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do N?cleo de Estudos para a Preven??o da Aids; Para psic?loga, a religi?o, em si, protege a juventude. Mas n?o impede que os fi?is sejam sujeitos da pr?pria sexualidade

M?nica Manir

Vera Paiva ? uma ativista dos direitos humanos – e das palavras certas no lugar devido. Vigia as pr?prias express?es e as minhas, e est? cercada de textos precisamente cient?ficos empilhados na bancada em L do escrit?rio de sua casa, em S?o Paulo. No computador, ela mostra mais um trabalho, e outro, muitos j? fugidos do campo virtual para a a??o.
Um deles tem o seguinte t?tulo: Jovens e Religi?o: Sexualidade e Direitos entre Lideran?as Cat?licas, Evang?licas e Afro-brasileiras.

Foi especialmente sobre os resultados desse material que conversamos ?s v?speras de dois congestionados eventos na capital paulista: a 16? Marcha para Jesus, que, soubemos depois, reuniu 1,2 milh?o de marchantes na quinta-feira, e a 12? Parada do Orgulho GLBT, que deve
atrair hoje cerca de 3,5 milh?es. O grupo que Vera coordenou queria compreender como a conviv?ncia em comunidades religiosas repercute na experi?ncia sexual dos jovens em SP, Rio e Recife. Os resultados em detalhe ela explica daqui a pouco, na entrevista.

Por ora, a professora da USP, colaboradora da Universidade Col?mbia, nos EUA, e autora de livros sobre sexualidades, g?neros e aids, como Fazendo Arte com a Camisinha, reconhece que tivemos grandes avan?os nos ?ltimos 20 anos quanto ao uso do preservativo. Tamb?m afirma que a religi?o protege a juventude em certa medida. Mas interpela seu
otimismo com dois entretantos: muitos evang?licos iniciam sua vida sexual sem a preven??o, e a aids avan?a entre os jovens brasileiros, em especial os homossexuais. N?o podemos perder essa janela de oportunidade imensa de trabalhar a educa??o sexual em um grupo gigantesco de gente. ? a hora e a vez, portanto, de arrebanhar a multid?o de jovens contra os estigmas e a favor do direito irrestrito ? informa??o, conclui, ajeitando a pilha de v?rgulas, dois pontos e
exclama?es sobre a mesa do escrit?rio.

A senhora coordenou uma pesquisa que envolveu jovens, religi?o e sexualidade. Qual foi o resultado mais surpreendente?

Fizemos uma pesquisa entre l?deres cat?licos, evang?licos e afro-brasileiros em S?o Paulo, Recife e Rio de Janeiro. O que verificamos ? que, entre jovens pentecostais, houve um aumento da propor??o dos que se iniciaram sexualmente antes dos 19 anos, provavelmente antes de casar. E esse n?mero aumentou sem a preven??o. Ou seja, esses jovens est?o aumentando a quantidade de sexo, mas n?o a de camisinha.

A que atribui isso?


Quero chamar a aten??o para o seguinte: mesmo diante dos dogmas, as pessoas conseguem ser sujeitas de sua pr?pria sexualidade. Veja que esse estudo envolveu jovens que s?o l?deres religiosos na sua comunidade. Eles participam, s?o ativos, militam. Os evang?licos afirmam que sexo fora ou antes do casamento ? pecado e permitem ou mesmo recomendam contraceptivos, mas dentro do matrim?nio. Quando voc? vai ver, uma propor??o imensa deles transou antes do casamento – e sem preservativo. Ent?o dizem uma coisa e fazem outra.

A Igreja Cat?lica tamb?m prega o sexo ap?s o casamento?

Sim, tanto a Igreja quanto os crist?os protestantes estimulam o adiamento da vida sexual at? o casamento. E, na verdade, o que se tem ? uma contradi??o gigantesca – em boa parte, a idade m?dia de inicia??o sexual est? pelos 15 anos, tanto para meninos quanto para meninas.
Raras pessoas casam antes disso. O que a pesquisa mostrou, por?m, ? que houve um aumento no uso de preservativos na primeira rela??o, exceto entre os jovens protestantes.

O jovem conversa com os l?deres religiosos sobre sexo?

Os l?deres se preocupam com o impacto da erotiza??o da m?dia entre jovens e apontam a atividade sexual como um assunto que se prop?em a acolher. O que a pesquisa revelou, no entanto, ? que quase 100% dos jovens conversam, em primeiro lugar, com os amigos. Depois, com os pais. Em seguida, com o namorado ou com a namorada e, ent?o, com outros parentes. Os l?deres religiosos chega, no m?ximo, a 5%. E, ainda assim, n?o se fala de sexo como fonte de prazer e descoberta, mas como raz?o de sofrimento e problemas.

Qual deveria ser o tom dessa conversa?

N?o adianta falar que sexo ? perigoso e proibido. Precisamos ensinar as pessoas a transformar a curiosidade e a vontade de amar em entrega, em vontade de ter intimidade. Isso n?o ? uma quest?o restrita ? juventude, mas ? ali que se inicia. Ao mesmo tempo, ? necess?rio quebrar essa imagem de que a adolesc?ncia ? uma fase problem?tica da vida. No campo da sexualidade, a gente n?o se cura da adolesc?ncia quando passa para a vida adulta. Estamos nos enganando achando que, depois dos 21 anos, todo mundo vai usar camisinha, n?o vai engravidar contra a vontade, n?o vai ser impulsivo. Isso ? uma bobagem. Cria-se a ilus?o de que, assim que passar dessa idade, est? tudo resolvido. Sem projetos de educa??o,
o jovem pode mesmo transformar o desejo inconsciente num desejo atuado de forma inconseq?ente e uma ilus?o. Agora, se voc? acha que ? a idade que provoca isso, ser? absolutamente injusto com 90% dos jovens que s?o absolutamente comportados, estudam quando podem, v?o ? escola quando t?m essa alternativa, quando a estrutura familiar permite e a escola n?o expulsa.

Mas certos comportamentos na adolesc?ncia tendem a se perpetuar?

Nada ? perp?tuo. Muitas pessoas mudam ao longo da vida. Mas sabemos que os primeiros anos s?o marcantes em rela??o ao que seremos no futuro, inclusive em rela??o ? sexualidade. Uma crian?a abusada sexualmente tem uma experi?ncia diferente de vida em rela??o a esse tema. Um adolescente que come?a a vida sexual impondo-se cuidado e planejamento tende a manter isso ao longo do tempo. O adolescente que se arrisca o tempo inteiro pode se relacionar assim l? na frente.

A religi?o protege o jovem?

Em certo sentido, sim. Ser membro de uma comunidade religiosa ajuda o jovem a permanecer na escola, a ter acesso ? sa?de. Religi?o d? sentido ? vida, ajuda a ter valores estruturados, auxilia a fam?lia e a escola a educar. Ao mesmo tempo, ? fonte de discrimina??o. Cerca de 3% dos cat?licos, 16% dos evang?licos e 30% dos pertencentes ao candombl?/umbanda disseram isso na pesquisas. Os devotos desse ?ltimo grupo costumam, inclusive, esconder a pr?pria religi?o, afirmando ser esp?ritas ou espiritualistas. Os evang?licos tamb?m s?o discriminados,
mas n?o escondem seu credo.



O sexo tem a mesma significa??o para todos os grupos?

Para os adeptos do candombl? e da umbanda, o sexo ? fonte de prazer e troca de energia. J? a maioria dos cat?licos diz que sexo ? prova de amor pelo parceiro ou pela parceira. Uma propor??o importante deles tamb?m afirma ser importante para constituir fam?lia, mas essa ? a
maior escolha dos evang?licos. Interessante que, quase na mesma medida para afro-brasileiros e cat?licos, o sexo ? uma necessidade f?sica, como a fome e a sede. Para todos, a idade n?o ? importante para a primeira vez, mas a maturidade, sim.

Como esses grupos v?em a homossexualidade?

A maioria entende que ser homossexual n?o tem a ver com a esfera religiosa, que os homossexuais precisam ser respeitados como seres humanos, aumentou a propor??o de toler?ncia com os homossexuais, mas que nem por isso eles devem demonstrar ou atuar sua sexualidade dentro do grupo religioso. Esse tema foi especialmente quente e pol?mico entre
os jovens e l?deres do candombl? e da umbanda, que esperavam mais toler?ncia aos homossexuais no cotidiano e nas respostas aos question?rios. Ainda assim, a homossexualidade ? mais acolhida entre os afro-brasileiros, tanto como orienta??o sexual assumida quanto para o sacerd?cio.

E para os evang?licos e cat?licos?

A heteronormatividade ? uma refer?ncia nas religi?es crist?s. Para os evang?licos, conduzir-se abertamente como homossexual ? uma forma de n?o respeitar a religi?o porque o papel do homem e da mulher ? a reprodu??o. O homossexual deve, ent?o, ser acolhido e aconselhado, mas precisa passar por um tratamento espiritual para se libertar de sua orienta??o. Alguns l?deres acreditam que o homossexual n?o pode ser sacerdote porque ? papel de homem ou porque precisam ainda superar seu homossexualismo, remetendo novamente ? patologia. Entre cat?licos e anglicanos, a homossexualidade est? em pauta. H? muitos grupos cat?licos mais abertos ? diversidade, que come?am a debater o dogma, apesar do discurso oficial nada progressista da Igreja. Entre os anglicanos, j? ? poss?vel um gay viver a experi?ncia do exerc?cio do sacerd?cio, por exemplo.

A senhora tamb?m coordenou um trabalho com jovens portadores do HIV. O estigma da aids ainda est? associado ? homossexualidade?

Sim. Muitos meninos com quem a gente conversou tinham medo de dizer que eram portadores e serem chamados de bicha, quando podem ter sido infectados pelos pais ou numa rela??o sexual na rua. Vice-versa e ao contr?rio. O menino homossexual tamb?m n?o consegue conversar com os outros e discutir o assunto em casa, na igreja ou na escola. Os que
est?o ? volta acham que o sil?ncio ensina alguma coisa, como se o sil?ncio fosse equivalente a eliminar a curiosidade, o desejo de namorar, a paix?o. O sil?ncio n?o ensina. Ele deixa um v?cuo que os jovens preenchem com a experi?ncia viva, que pode ser desastrosa, ou
com informa?es incorretas ou mal resolvidas.

Quais seriam essas experi?ncias desastrosas?

Eles podem deprimir, se maltratar, n?o se relacionar, se esconder, que ? o que h? de mais triste. ? uma restri??o desnecess?ria de horizontes, tanto para os homossexuais como para esses jovens portadores de HIV. Eles t?m desejos que n?o podem existir. No caso dos adolescentes com HIV, h? todo o dilema de para quem contar, como contar, quando contar,
o medo de ser abandonado, ser rejeitado. E eles ainda precisam lidar com o in?cio da vida sexual, o marco da adolesc?ncia. Como ocorre com todos os adolescentes, os adultos mostram o perigo. N?o ensinam como dizer sim, s? como dizer n?o. Isso atrapalha porque dificulta o acesso ? informa??o. Veja voc? que ? grande o n?mero de jovens, cerca de 70%
na nossa pesquisa, que fazem sexo contra a vontade, sob viol?ncia. Isso ? mais comum entre meninos homossexuais. A situa??o fica ainda mais complicada quando se observa que a aids est? crescendo justamente entre os jovens, em particular os homossexuais. A aids n?o ? problema superado.

Nesse sentido, em que est? falhando a educa??o sexual?

Nas escolas, quando se d? informa??o sobre aids, assume-se que a preven??o ? para heterossexuais ou para pessoas negativas. Esquece-se que, naquele grupo de alunos, pode haver jovens portadores do HIV que, portanto, v?o precisar de um pouco mais de informa??o. O mesmo ocorre com os jovens homossexuais. Onde est? a informa??o espec?fica para quem
faz sexo de um modo diferente?

O grau de escolaridade faz diferen?a na preven??o?

A escolaridade protege em v?rios sentidos. Os jovens de mais escolaridade t?m taxa de uso de preservativo muito maior e, al?m disso, iniciam a vida sexual bem mais tarde. Est?o h? mais tempo na escola, t?m projetos de vida que se confundem com a profissionaliza??o e,
eventualmente, abrem m?o de outras coisas. A escolaridade ? um pr?xis de renda familiar, um dos indicadores mais interessantes para a gente compreender o status socioecon?mico. Esse status significa n?o apenas a quantidade de dinheiro que se tem, mas onde ele ? investido. Exemplo cl?ssico: uma colega nossa fez uma compara??o entre fam?lias oper?rias
e fam?lias de funcion?rios p?blicos com a mesma renda. As fam?lias oper?rias, ou seja, B e C em ascens?o, tendem a gastar o que ganham para comprar casa, para se estabelecer no terreno, ser propriet?rias de algumas coisas. N?o necessariamente investem diretamente em educa??o.
As fam?lias de funcion?rios p?blicos, por sua vez, tendem a pagar aluguel, morar no centro da cidade, tudo para investir brutalmente na educa??o dos seus filhos. Normalmente, as fam?lias de maior escolaridade est?o seguindo o rumo daquilo que ? mais t?pico das
fam?lias de alta renda, que ? investir fortemente na educa??o e ensinar os filhos a se cuidar melhor.

Na pesquisa sobre uso de preservativos na inicia??o sexual dos adolescentes brasileiros, apareceu um resultado intrigante: a diminui??o do uso de camisinha em jovens mais escolarizados que iniciaram a vida sexual com menos de 14 anos. Como explicar isso?

Ele ? relevante. A minha hip?tese ? a de que tem muita gente com alta escolaridade nesse grupo que come?a a vida sexual de forma desprotegida. N?o ? um problema dos pobres. A quest?o ? que se deixou de fazer a preven??o da aids. Os pais e as escolas est?o achando que o problema est? resolvido. O fato de termos um programa bem-sucedido de aids pode levar a crer que quem faz o programa ? o outro; eu n?o preciso mais fazer a minha parte. As pessoas enjoaram de falar sobre aids e se esqueceram de que os jovens que est?o ali n?o s?o os mesmos de cinco, seis, sete, oito, nove, dez anos atr?s. Eu tenho de falar o tempo inteiro sobre isso porque a aids n?o vai embora, a cura n?o aconteceu, a gente n?o derrotou o v?rus.

O fato de n?o se ver na m?dia pessoas abatidas pela doen?a pode contribuir para essa sensa??o de que a aids est? superada?

Existe hoje uma cultura de se fazer o serosorting, ou seja, acreditar que ? poss?vel adivinhar o status sorol?gico do parceiro pelo aspecto do portador. A cara da aids n?o ? a cara da lipodistrofia. Outros acham que ? coisa de gay de mais idade, mas, como j? disse, a aids est?
crescendo entre os mais jovens. Outros acreditam que virou dist?rbio cr?nico, tal qual diabete. Acontece que a discrimina??o ainda ? pesad?ssima sobre quem ? portador. A dificuldade para namorar, para revelar aos parceiros que se t?m o HIV… At? conseguimos reduzir o estigma de forma importante no Brasil, mas a vida com aids n?o ? igual ? vida sem aids.

O tema oficial da Parada GLBT deste ano ? a defesa do Estado laico.
Essa bandeira pol?tica ? eficaz?


Ela ? fundamental para garantir as pol?ticas de Estado de preven??o para que a gente possa falar abertamente sobre camisinha na escola – mas n?o s?. Deve-se incorporar e respeitar os valores de todas as religi?es em todos os contextos. A gente entra em um tribunal e tem l?
um crucifixo; no servi?o de sa?de h? uma cruz. ? complicad?ssimo para um pai-de-santo fazer um ritual de despedida para uma pessoa dentro de um hospital, por exemplo. As crian?as adeptas do candombl? e da umbanda sentem dificuldade para discutir seus valores na escola, assim como os evang?licos. Ali?s, ? importante aceitar que os evang?licos defendam a
virgindade at? o casamento. Isso n?o significa que prescindam de informa?es sobre preven??o para o caso de mudarem de id?ia, de religi?o, de sofrerem abuso ou de se verem em um contexto em que agir de acordo com os seus valores seja imposs?vel por mil raz?es. Isso ? um direito da juventude, independentemente de sua cren?a e orienta??o sexual.

? poss?vel produzir toler?ncia religiosa e sexual ao mesmo tempo?

Sim. Sentimos isso quando colocamos l?deres e jovens das tr?s religi?es para conversar sobre os direitos ? prote??o, que s?o direitos humanos, em suma. Uma toler?ncia produz a outra e vice-versa. Fortalece-se a id?ia de que a humanidade ?, em princ?pio, diversa. N?o existe uma
humanidade natural, a humanidade do homem, a humanidade da mulher. G?nero ? um conceito cultural, aquilo que a sociedade diz ser do homem e da mulher, e n?o um conceito biol?gico. Ele varia na sociedade brasileira em fun??o da religi?o, da cren?a, da rede social. Em certo contexto, a bissexualidade pode ser aceita entre as meninas. Mas ser?
igual entre os meninos?

Como, em resumo, fortalecer o Estado laico nesse quadro de direitos humanos?

H? um princ?pio usado pelo Boaventura de Sousa Santos (soci?logo portugu?s) para interpretar a Carta dos Direitos Humanos, que eu adoro. ? o seguinte: defender a igualdade sempre que a diferen?a gerar inferioridade e defender a diferen?a sempre que a igualdade implicar descaracteriza??o. Se consigo respeitar as cren?as e os valores dos outros, consigo respeitar as orienta?es sexuais dos outros. Precisamos trabalhar com a no??o de que o direito ? informa??o e ? preven??o s?o direitos humanos, fundamentais, e que, uma vez assim, ? uma obriga??o do Estado proteger e promover esses direitos. Isso ? o que justifica o
Estado laico.


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Centro de Referencia e Treinamento DST/AIDS.
http://www.crt.saude.sp.gov.br

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