Reportagem publicada na Revista das Religi?es, da Editora Abril, novembro de 2004
Suzel Tunes
Domingo, 10 horas da manh?. O sino toca chamando os fi?is. No altar h? um sacerdote de batina, um crucifixo e velas acesas. Nos vitrais, cenas b?blicas. Mas logo voc? percebe que n?o est? dentro de uma Igreja Cat?lica. Entre as obras de arte sacra que adornam a igreja, n?o h? figuras de santos. Num dos bancos da igreja, ? poss?vel encontrar a esposa ou os filhos do sacerdote, que ? chamado de pastor. E no momento da comunh?o, todos os fi?is compartilham do p?o e do vinho. Voc? est? numa Igreja Luterana, a igreja que nasceu da Reforma Protestante do s?culo 16.
Olhando em torno, voc? ver? algumas cabe?as loiras e faces rosadas, especialmente se estiver em uma igreja do sul do pa?s. ? que a Igreja Luterana nasceu na Alemanha e foram imigrantes que a trouxeram para c?. Em algumas igrejas, ainda h? hor?rios especiais para cultos em alem?o, mas ? cada vez maior o n?mero de Souzas e Silvas mesclados a M?llers e Beckers. E al?m dos cl?ssicos hinos escritos pelo reformador Martinho Lutero, os quais a congrega??o canta em un?ssono acompanhada do ?rg?o, tamb?m se ouvem c?nticos em ritmo de bossa nova ou samba, cantados com o apoio do viol?o.
Os primeiros protestantes no Brasil
No Brasil, existem duas igrejas do ramo luterano: a Igreja Evang?lica de Confiss?o Luterana no Brasil, IECLB, e a Igreja Evang?lica Luterana do Brasil, IELB. A mais antiga ? a IECLB, que chegou ao Brasil com os primeiros imigrantes alem?es. Segundo o historiador Ren? Gertz, professor da PUCRS e UFRGS, existem ind?cios da presen?a de protestantes no Brasil a partir de 1555, junto com as invas?es francesas. No s?culo XVII, mais protestantes teriam vindo com invasores holandeses. Mas nenhuma destas vindas teria deixado marcas significativas. "O primeiro grupo mais expressivo de protestantes a entrar no Brasil e se estabelecer em definitivo foi o dos luteranos que, a partir de 1819 e, em especial, depois de 1824, vieram como imigrantes", explica Gertz.
Primeiro em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e depois em S?o Leopoldo, Rio Grande do Sul, os luteranos se organizaram em comunidades e constru?ram as primeiras igrejas. Em 1904, chegariam ao Brasil os primeiros mission?rios luteranos procedentes dos Estados Unidos, estado do Missouri. Tinham o objetivo de procurar fi?is ainda carentes de atendimento pastoral e acabaram fundando a IELB.
H? algumas diferen?as decorrentes da constitui??o hist?rica e ra?zes culturais. Assim, por exemplo, a IECLB ordena mulheres, oferece a ceia (eucaristia) a crian?as e mant?m di?logo com a Igreja Cat?lica; a IELB, n?o. Mas n?o h? rivalidades entre as duas denomina?es. "Mantemos um bom di?logo entre as duas igrejas e um bom trabalho de coopera??o, principalmente na ?rea de literatura", ressalta o pastor Carlos Winterle, presidente da IELB. As editoras luteranas (Sinodal, da IECLB e Conc?rdia, da IELB) co-editam devocion?rios e obras sobre Lutero.
Eles s?o poucos, mas fazem diferen?a
Segundo os c?lculos do professor Ren? Gertz, essas duas igrejas juntas n?o chegam a somar 1 milh?o de membros, algo em torno de 0,58% da popula??o brasileira
Mas quem acompanha o notici?rio tem a impress?o de que a Igreja Luterana ? muito maior. ? que os meios de comunica??o costumam convidar pastores luteranos para representar o protestantismo em eventos ecum?nicos ou mesas redondas com l?deres religiosos.O professor Gertz acredita que esta proje??o social esteja vinculada ? pr?pria qualidade das institui?es luteranas. "O primeiro curso de p?s-gradua??o em Teologia reconhecido pelo MEC foi o da Escola Superior de Teologia da IECLB, em S?o Leopoldo. E segundo dados levantados em 2000, a quarta universidade em n?mero de alunos ? a Ulbra, Universidade Luterana do Brasil, mantida por uma comunidade ligada ? IELB", destaca ele.
A igreja que nasceu numa universidade
A educa??o ? uma prioridade nesta igreja nascida a partir dos questionamentos de um professor da Universidade de Wittenberg. Foi na porta da igreja da universidade que Martinho Lutero pregou as famosas "95 teses": quest?es teol?gicas que acabariam resultando na excomunh?o do monge. Mais tarde, Lutero fez uma tradu??o da B?blia em latim para o alem?o, a fim de que os ensinamentos crist?os pudessem ser acess?veis aos leigos,sem a necessidade da intermedia??o de um padre. Mas, para isso, era preciso saber ler. Junto aos pr?ncipes alem?es, ele defendeu a necessidade da cria??o de escolas e incutiu em seus seguidores a mesma preocupa??o. Assim, os imigrantes luteranos que chegavam ao Brasil constru?am primeiro as escolas para seus filhos, depois as igrejas.
E essa valoriza??o do ensino vem at? hoje, sobretudo em rela??o ?s crian?as. Nos cultos dominicais, elas recebem aten??o especial. Enquanto os adultos celebram no templo, as crian?as participam do "culto infantil", com estudos b?blicos preparados em linguagem apropriada ? idade. Em outros dias da semana, grupos formados por afinidades de interesse (jovens, casais, senhoras…) tamb?m se re?nem para estudos b?blicos organizados no templo ou na casa de um dos membros.
A a??o social da igreja tamb?m ocorre por meio da participa??o dos grupos de membros da igreja, sobretudo das senhoras, que organizam trabalhos de assist?ncia direta ? popula??o carente ou arrecada??o de fundos para institui?es. "Nossa for?a mission?ria ? a a??o social", diz o pastor Guilherme Lieben, da Igreja da Ressurrei??o da IECLB, de Santo Andr?. Na IECLB existem at? mulheres que dedicam sua vida exclusivamente ?s atividades sociais e mission?rias, abrindo m?o da vida familiar, ? semelhan?a das freiras cat?licas. Elas s?o chamadas de diaconisas. "A esta irmandade pertencia a Irm? Doraci Julita Edinger, que em 21 de fevereiro de 2004 foi assassinada em Nampula, Mo?ambique, onde atuava desde 1998 na constitui??o de comunidades eclesiais e no desenvolvimento de projetos sociais comunit?rios", lembra o pastor Walter Altmann, presidente da IECLB. Na IELB, as atividades sociais tamb?m t?m forte participa??o feminina, mas elas n?o se organizam em irmandades, nem optam pelo celibato.
Os dois sacramentos luteranos
Dos sete sacramentos da Igreja Cat?lica (batismo, confirma??o ou crisma, eucaristia, penit?ncia ou confiss?o, un??o dos enfermos, ordem sacerdotal e matrim?nio), Lutero reconheceu apenas dois: o batismo e a eucaristia (tamb?m chamada de "santa ceia").
O batismo – com ?gua, em nome do Pai, do Filho e do Esp?rito Santo – ? um sacramento ministrado, geralmente, a beb?s. Podem ser batizados tamb?m jovens ou adultos, desde que n?o tenham sido batizados anteriormente. A Igreja Luterana n?o rebatiza fi?is batizados em outras denomina?es crist?s. "Qualquer batismo com ?gua, em nome do Pai, do Filho e do Esp?rito Santo, ? v?lido", explica Cl?udio Rice Geisler, pastor da Congrega??o Evang?lica Luterana de S?o Jos? dos Campos e conselheiro distrital (esp?cie de bispo) do Distrito Paulista da IELB. Depois de batizadas, por volta dos 12 anos as crian?as luteranas costumam fazer a "confirma??o", uma declara??o p?blica de sua f? e compromisso com a igreja.
Em geral, as igrejas luteranas celebram a ceia todos os domingos, embora n?o haja obrigatoriedade. Diferente do rito cat?lico, pastores e fi?is t?m igual acesso ao p?o e ao vinho. O "corpo de Cristo" ? recebido com um peda?o de p?o, que pode ser uma h?stia (uma massinha de trigo sem fermento). O "sangue de Cristo" ? vinho na IELB mas, na IECLB, que oferece a ceia para crian?as que ainda n?o fizeram confirma??o, costuma ser suco de uva.Outra altera??o luterana em rela??o ? eucaristia cat?lica ? o pr?prio conceito do sacramento: para os cat?licos, ocorre na ceia o fen?meno da transubstancia??o. ? uma mudan?a de subst?ncia, na qual p?o e vinho transformam-se no corpo e sangue do Cristo crucificado. Lutero acreditava que o sacrif?cio de Cristo tinha sido realizado de uma vez por todas. Contudo, tamb?m discordava de outros reformadores, como Calvino, que entendiam a ceia apenas como um memorial simb?lico. Lutero defendia que o corpo e sangue de Cristo est?o presentes na Santa Ceia "em", "com" e "sob" o p?o e o vinho, o que ele chamava de "presen?a real do corpo e sangue de Cristo" — conceito que os te?logos chamam hoje de consubstancia??o.
Eles cr?em que s?o salvos pela f?
Seguindo os ensinamentos do l?der da Reforma, os luteranos seguem o princ?pio do "sacerd?cio universal". Ou seja, a autoridade m?xima n?o ? do sacerdote, mas da B?blia, ? qual todo crist?o tem acesso. Mas, ainda que a leitura da Palavra de Deus direcione os passos, ela n?o garante a paz de esp?rito. O pr?prio Martinho Lutero foi um jovem monge atordoado por um perene sentimento de culpa, resultado da consci?ncia da pr?pria imperfei??o. Como o ser humano, pecador por natureza, pode alcan?ar o reino dos c?us? Lutero encontrou a resposta na pr?pria B?blia, lendo as cartas do ap?stolo Paulo: "Justificados, pois, mediante a f?, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo" (Romanos 5.1).
A chamada doutrina da "justifica??o pela f?" bateu de frente com a cren?a, ent?o corrente, de que boas obras e penit?ncias aplicadas pelos sacerdotes pudessem levar o crist?o ao c?u. Hoje essa j? ? uma quest?o que n?o divide cat?licos e luteranos. Em 31 de outubro de 1999, representantes da Igreja Cat?lica e da Federa??o Luterana Mundial assinaram a "Declara??o conjunta sobre a Doutrina da Justifica??o", na qual se l?: "Confessamos juntos: somente por gra?a, na f? na obra salv?fica de Cristo, e n?o por causa de nosso m?rito, somos aceitos por Deus e recebemos o Esp?rito Santo, que nos renova os cora?es e nos capacita e chama para as boas obras".
Acreditando que a salva??o ? uma quest?o particular de f?, os luteranos valorizam muito a liberdade e responsabilidade individuais. "A Igreja n?o faz prescri?es morais, mas d? orienta?es evang?licas para a vida de seus membros", afirma o pastor Walter Altmann, presidente da IECLB. Assim, os luteranos s?o livres para dan?ar numa festa ou beber uma ta?a de vinho ?s refei?es, por exemplo – pr?ticas que s?o condenadas em muitas igrejas protestantes. Condena-se o alcoolismo, n?o a bebida; assim como se condena o fumo – pelos comprovados efeitos nocivos ? sa?de – mas n?o se rejeita o fumante. "O fumo ? combatido, mas n?o ? uma quest?o que determine a salva??o. N?o existe uma hierarquia espiritual entre fumante e n?o fumante", exemplifica o pastor Guilherme Lieven, da IECLB de Santo Andr?. Seguindo os ensinamentos do ap?stolo Paulo, os luteranos vivem "a liberdade para a qual Cristo os libertou" (G?latas 5.1), com a responsabilidade de que "todas as coisas s?o l?citas, mas nem todas conv?m" (1 Cor?ntios 6.12).
Evang?licos, protestantes e luteranos
O monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) nunca quis criar uma nova igreja. Num de seus escritos de 1522, ele diz, muito diretamente, como era seu estilo: "Pe?o que meu nome seja calado e que ningu?m se chame de luterano, sen?o de crist?os. Que ? Lutero? Pois a doutrina n?o ? minha! Eu tamb?m n?o fui crucificado por ningu?m. S?o Paulo, em 1 Co 3, n?o quis suportar que os crist?os se chamassem de paulinos ou petrinos, mas de crist?os. Como poderia eu, pobre e fedorento saco de vermes, fazer com que os filhos de Cristo fossem chamados por meu nome desprovido de qualquer valor?". Contudo, o surgimento de uma igreja "luterana" foi inevit?vel. Ap?s ser excomungado da Igreja Cat?lica, em 1520, Lutero ficou dez meses escondido no castelo de Wartburg. Ao voltar para sua cidade, Wittenberg, com a prote??o do pr?ncipe da Sax?nia, retomou o p?lpito de sua igreja e voltou a pregar – mas a igreja j? n?o podia ser chamada de cat?lica.
Em 1526, na Dieta (assembl?ia) de Espira, decidiu-se que cada pr?ncipe controlaria os neg?cios da igreja em seu pa?s. Assim, a Alemanha ficou dividida em estados cat?licos e "luteranos". Em 1529, uma nova assembl?ia decidiu que, nos estados luteranos, as duas fac?es teriam liberdade de culto, mas nos estados cat?licos, essa liberdade seria concedida apenas aos cat?licos. Os nobres que apoiavam os ensinos de Lutero protestaram veementemente contra a decis?o e, desde ent?o, popularizou-se, tamb?m, o termo "protestantes" para as igrejas nascidas a partir da Reforma. "Mas luteranos e protestantes foram nomes que os outros nos deram, o termo que n?s cunhamos foi evang?licos", explica o pastor Guilherme Lieven, da Igreja Evang?lica de Confiss?o Luterana no Brasil. A palavra "evang?lico" tem origem em um dos tr?s pilares da Reforma: sola gratia (somente a gra?a), sola fide (somente a f?), sola scriptura (somente a escritura). Ou seja: a salva??o vem somente pela gra?a, mediante a f?, tendo a escritura – o "evangelho" – como guia.
A Irmandade Evang?lica de Maria
Entre os v?rios parques de Curitiba, existe um especialmente dedicado ? ora??o: ? o Bosque de Jesus, que fica no Bairro S?o Louren?o. Entre ?rvores e flores, h? esculturas retratando passagens da vida de Cristo e bancos convidando ? medita??o. Quem zela por esse lugar ? a Irmandade Evang?lica de Maria, uma institui??o internacional e interdenominacional fundada na Alemanha, em 1947, pela iniciativa de duas mo?as luteranas: Klara Schlink e ?rika Madauss, que adotariam o nome religioso de Madre Basilea e Madre Martyria, respectivamente.
O estilo de vida das irm?s de Maria lembra o das freiras cat?licas: ao entrar para a irmandade, elas ganham um novo nome, passam a viver em comunidade, usam h?bitos brancos e adotam o celibato. "Recebemos uma alian?a com o nome de Jesus. N?o estamos casadas com a Igreja", explica Irm? ?dola, de Curitiba, a ?nica filial da organiza??o no Brasil. Por isso, embora as primeiras irm?s fossem luteranas, a irmandade tem um car?ter ecum?nico, contando com membros de diversas denomina?es evang?licas, procedentes de 18 pa?ses. Irm? ?dola, por exemplo, ? batista e norte-americana.
O objetivo da Irmandade ? "seguir a Jesus, segundo o exemplo de Maria". Elas atuam especialmente no ?mbito da educa??o, por meio da edi??o de livros, realiza??o de estudos b?blicos e aconselhamento espiritual (que pode ser agendado pessoalmente). A sede da entidade chama-se Cana?, e n?o por acaso: nascida nos escombros de uma Alemanha devastada pela guerra, a Irmandade Evang?lica de Maria dedicou-se, desde o seu nascimento, a desenvolver um "minist?rio de reconcilia??o" com a comunidade judaica. No Brasil, a Irmandade estendeu sua mensagem de perd?o e di?logo aos povos ind?genas, que, tal como os judeus, tamb?m foram v?timas de viol?ncia com o aval do cristianismo.
PARA SABER MAIS:
Livro:
Igreja e Germanidade, de Martin Dreher, Editora Sinodal,/Escola Superior de Teologia, S?o Leopoldo, 2003
Sites:
Igreja Evang?lica de Confiss?o Luterana no Brasil: www.ieclb.org.br
Igreja Evang?lica Luterana do Brasil: www.ielb.org.br
Irmandade Evang?lica de Maria: www.canaan.org.br
Editora Conc?rdia: www.editoraconcordia.com.br
Editora Sinodal: www.editorasinodal.com.br