Muitas tribos brasileiras ainda matam crian?as – e a Funai nada faz para impedir o infantic?dio
Leonardo Coutinho/Revista Veja
Fotos Photoon e arquivo pessoal![]() |
A ?ndia Hakani, em dois momentos. Ao lado, abra?a a m?e adotiva, M?rcia, no seu anivers?rio de 12 anos. Acima, aos 5, em sua tribo: altura e peso de 7 meses |
A fotografia acima foi tirada numa festa de anivers?rio realizada em 7 de julho em Bras?lia. Para comemorar os seus 12 anos, a menina Hakani pediu a sua m?e adotiva, M?rcia Suzuki, que decorasse a mesa do bolo com figuras do desenho animado Happy Feet. O presente de que ela mais gostou foi um boneco de Mano, protagonista do filme. Mano ? um ping?im que n?o sabe cantar, ao contr?rio de seus companheiros. Em vez de cantar, dan?a. Por isso, ? rejeitado por seus pais. A hist?ria de Hakani tamb?m traz as marcas de uma rejei??o. Nascida em 1995, na tribo dos ?ndios suruuarr?s, que vivem semi-isolados no sul do Amazonas, Hakani foi condenada ? morte quando completou 2 anos, porque n?o se desenvolvia no mesmo ritmo das outras crian?as. Escalados para ser os carrascos, seus pais prepararam o timb?, um veneno obtido a partir da macera??o de um cip?. Mas, em vez de cumprirem a senten?a, ingeriram eles mesmos a subst?ncia.
O duplo suic?dio enfureceu a tribo, que pressionou o irm?o mais velho de Hakani, Aruaji, ent?o com 15 anos, a cumprir a tarefa. Ele atacou-a com um porrete. Quando a estava enterrando, ouviu-a chorar. Aruaji abriu a cova e retirou a irm?. Ao ver a cena, Kimaru, um dos av?s, pegou seu arco e flechou a menina entre o ombro e o peito. Tomado de remorso, o velho suruuarr? tamb?m se suicidou com timb?. A flechada, no entanto, n?o foi suficiente para matar a menina. Seus ferimentos foram tratados ?s escondidas pelo casal de mission?rios protestantes M?rcia e Edson Suzuki, que tentavam evangelizar os suruuarr?s. Eles apelaram ? tribo para que deixasse Hakani viver. A menina, ent?o, passou a dormir ao relento e comer as sobras que encontrava pelo ch?o. 'Era tratada como um bicho', diz M?rcia. Muito fraca, ela j? contava 5 anos quando a tribo autorizou os mission?rios a lev?-la para o Hospital das Cl?nicas de Ribeir?o Preto, em S?o Paulo. Com menos de 7 quilos e 69 cent?metros, Hakani tinha a complei??o de um beb? de 7 meses. Os m?dicos descobriram que o atraso no seu desenvolvimento se devia ao hipotireoidismo, um dist?rbio contorn?vel por meio de rem?dios.
Marcia Suzuki![]() |
Kasiuma e sua filha Tititu: ela convenceu a tribo a tratar a filha hermafrodita, em vez de mat?-la |
M?rcia e Edson Suzuki conseguiram adotar a indiazinha. Gra?as a seu empenho, o hipotireoidismo foi controlado, mas os maus-tratos e a desnutri??o deixaram seq?elas. Aos 12 anos, Hakani mede 1,20 metro, altura equivalente ? de uma crian?a de 7 anos. Como os suruuarr?s a ignoravam, s? viria a aprender a falar na conviv?ncia com os brancos. Ela pronunciou as primeiras palavras aos 8 anos. Hoje, tem problemas de dic??o, que tenta superar com a ajuda de uma fonoaudi?loga. Um psic?logo recomendou que ela n?o fosse matriculada na escola enquanto n?o estivesse emocionalmente apta a enfrentar outras crian?as. Hakani foi alfabetizada em casa pela m?e adotiva. Neste ano, o psic?logo autorizou seu ingresso na 2? s?rie do ensino fundamental.
A hist?ria da ado??o ? um cap?tulo ? parte. Mostra como o relativismo pode ser perverso. Logo que retiraram Hakani da aldeia, os Suzuki solicitaram autoriza??o judicial para adot?-la. O processo ficou cinco anos emperrado na Justi?a do Amazonas, porque o antrop?logo Marcos Farias de Almeida, do Minist?rio P?blico, deu um parecer negativo ? ado??o. No seu laudo, o antrop?logo acusou os mission?rios de amea?ar a cultura suruuarr? ao impedir o assassinato de Hakani. Disse que semelhante barbaridade era 'uma pr?tica cultural repleta de significados'.
Ao contr?rio do que acredita o antrop?logo Almeida, os ?ndios da tribo n?o decidem sempre da mesma forma. Em 2003, a suruuarr? Muwaji deu ? luz uma menina, Iganani, com paralisia cerebral. A aldeia exigiu que ela fosse morta. Muwaji negou-se a execut?-la e conseguiu que a tribo autorizasse seu tratamento em Manaus. M?dicos da capital amazonense conclu?ram que o melhor seria encaminhar Iganani para Bras?lia. Antes disso, por?m, foi necess?rio driblar a Funda??o Nacional do ?ndio (Funai). O ?rg?o vetou sua transfer?ncia com o argumento de que um ?ndio isolado n?o poderia viver na civiliza??o. S? voltou atr?s quando o caso foi denunciado ? imprensa. Agora, Iganani passa tr?s meses por ano em Bras?lia. Aos 4 anos, consegue caminhar com o aux?lio de um andador. Estaria melhor se a Funai permitisse que ela morasse continuamente em Bras?lia. H? dois anos, os suruuarr?s voltaram a enfrentar uma m?e que se recusava a matar a filha hermafrodita, Tititu. A tribo consentiu que a menina fosse tratada por brancos. Em S?o Paulo, ela passou por uma cirurgia corretora. Sem a anomalia, Tititu foi finalmente aceita pela aldeia.
Fotos Photton![]() |
? esquerda, Amal?, sobrevivente de uma tribo que fez pose para a BBC. ? direita, a deficiente Iganani com a m?e, Muwaji, que se negou a envenen?-la |
O infantic?dio ? comum em determinadas esp?cies animais. ? uma forma de selecionar os mais aptos. Quando t?m g?meos, os sag?is matam um dos filhotes. Chimpanz?s e gorilas abandonam as crias defeituosas. Tamb?m era uma pr?tica recorrente em civiliza?es de s?culos atr?s. Em Esparta, cidade-estado da Gr?cia antiga que primava pela organiza??o militar de sua sociedade, o infantic?dio servia para eliminar aqueles meninos que n?o renderiam bons soldados. Um dos seus mais brilhantes generais, Le?nidas entrou para a hist?ria por ter liderado a resist?ncia her?ica dos Trezentos de Esparta no desfiladeiro de Term?pilas, diante do Ex?rcito persa, em 480 a.C. Segundo o historiador Her?doto, Le?nidas teria sido salvo do sacrif?cio apesar de ter um pequeno defeito em um dos dedos da m?o porque o sacerdote encarregado da triagem pressentiu o grande futuro que o beb? teria.
Hulton archive/Getty Images![]() |
Le?nidas, o her?i que entrou para a hist?ria: em sua Esparta beb?s defeituosos eram mortos |
Entre os ?ndios brasileiros, o infantic?dio foi sendo abolido ? medida que se aculturavam. Mas ele resiste, principalmente, em tribos remotas – e com o apoio de antrop?logos e a toler?ncia da Funai. ? praticado por, no m?nimo, treze etnias nacionais. Um dos poucos levantamentos realizados sobre o assunto ? da Funda??o Nacional de Sa?de. Ele contabilizou as crian?as mortas entre 2004 e 2006 apenas pelos ianom?mis: foram 201. Mesmo ?ndios mais pr?ximos dos brancos ainda praticam o infantic?dio. Os camaiur?s, que vivem em Mato Grosso, adoram exibir o lado mais vistoso de sua cultura. Em 2005, a tribo recebeu dinheiro da BBC para permitir que lutadores de jud? e jiu-j?tsu disputassem com seus jovens guerreiros a luta huka-huka, parte integrante do ritual do Quarup, em frente ?s c?meras da TV inglesa. Um ano antes, por?m, sem alarde, os camaiur?s enterraram vivo o menino Amal?, nascido de uma m?e solteira. Ele foi desenterrado ?s escondidas por outra ?ndia, que, depois de muita insist?ncia, teve permiss?o dos chefes da tribo para adot?-lo.
H? tr?s meses, o deputado Henrique Afonso (PT-AC) apresentou um projeto de lei que prev? pena de um ano e seis meses para o 'homem branco' que n?o intervier para salvar crian?as ind?genas condenadas ? morte. O projeto classifica a toler?ncia ao infantic?dio como omiss?o de socorro e afirma que o argumento de 'relativismo cultural' fere o direito ? vida, garantido pela Constitui??o. 'O Brasil condena a mutila??o genital de mulheres na ?frica, mas permite a viola??o dos direitos humanos nas aldeias. Aqui, s? ? crime infantic?dio de branco', diz Afonso. Ao longo de tr?s semanas, VEJA esperou por uma declara??o da Funai sobre o projeto do deputado e as hist?rias que aparecem nesta reportagem. A funda??o n?o o fez e n?o justificou sua omiss?o. Extra-oficialmente, seus antrop?logos apelam para o argumento absurdo da preserva??o da cultura ind?gena. A Funai deveria ouvir a ?ndia D?bora Tan Huare, que representa 165 etnias na Coordena??o das Organiza?es Ind?genas da Amaz?nia Brasileira: 'Nossa cultura n?o ? est?vel nem ? viol?ncia corrigir o que ? ruim. Viol?ncia ? continuar permitindo que crian?as sejam mortas'.