Julien Bouissou
Chunna Devi est? no centro de uma roda de camponesas. Todas elas trajam um sari – a vestimenta tradicional formada por uma longa pe?a de tecido enrolada no corpo – cor-de-rosa. Com a testa envolta em ataduras, ela retira do seu saco de pl?stico, len?os maculados de sangue. “Olhem para isso. Vejam o que eles fizeram comigo. Eram cinco homens. Eles arremessaram tijolos e deram golpes com bast?es em mim e na minha filha”, grita Chunna para a multid?o. Quatro dias antes, esta habitante de uma pequena aldeia do sul do Uttar Pradesh, uma regi?o pobre do norte da ?ndia, havia tentado recha?ar os seus agressores. Transportada numa cama at? a delegacia mais pr?xima, ela deu queixa na justi?a, mas os policiais se recusaram a dar continuidade ao inqu?rito. “Eles foram pagos para abandonar as investiga?es”, lamenta Chunna Devi. A “gangue cor-de-rosa” representa a sua ?ltima chance. Fitando-a com os seus olhos verdes, Sampat Pal Devi, a chefe desta gangue, lhe promete que justi?a ser feita. Daqui a pouco, ela ir? at? a delegacia junto com dezenas de “irm?s”, todas elas enroladas em panos rosa e armadas com bast?es.
Espalhadas por um grande n?mero de aldeias, elas s?o cerca de 200 justiceiras prontas para intervirem a qualquer momento para defender a causa das mulheres maltratadas pela justi?a e pelas for?as de manuten??o da ordem. Toda vez que elas recebem um pedido de ajuda, elas enfiam o seu sari de combate e empunham o seu bast?o. “N?s n?o contamos com o aux?lio de ningu?m. Os funcion?rios e a pol?cia s?o contra os pobres. N?s somos obrigadas a fazer respeitar a lei por nossa conta”, justifica a fundadora da gangue, Sampat Pal Devi.
No sul do Uttar Pradesh, no distrito de Bundelkhand, um dos mais pobres do pa?s, as meninas n?o t?m o mesmo direito de viver que os meninos. Um grande n?mero de mulheres pratica abortos clandestinos quando elas s?o informadas de que a crian?a que est? por nascer ? uma menina, o que elas fazem para evitar serem obrigadas a pagar um dote no momento do seu casamento. O resultado disso ? que a regi?o n?o conta mais do que 825 mulheres para 1.000 homens, em m?dia. Al?m disso, quando elas nascem, raras s?o aquelas que podem freq?entar a escola. Cerca de tr?s quartos das mulheres s?o analfabetas.
Sampat Pal Devi conhece muito bem essas injusti?as, pois ela mesma foi v?tima delas desde a sua inf?ncia. Aos 9 anos, ela se viu obrigada a afastar-se da escola, ap?s ter sido for?ada a se casar com o marido da sua irm?, a qual acabara de falecer, e ent?o deu ? luz, quatro anos mais tarde, o seu primeiro e ?nico filho. “Eu aprendi a ler e a escrever, sozinha, de noite, e depois consegui convencer o meu marido de que n?s dever?amos nos instalar na cidade”.
Enquanto ela vende ch? na sua banca ? beira de uma estrada, Sampat Pal Devi ouve atentamente, atr?s do seu balc?o, as primeiras confid?ncias das mulheres maltratadas. A primeira interven??o importante desta l?der remonta a cerca de vinte anos, quando ela mobilizou uma comunidade de alde?es com o objetivo de for?ar um homem a desistir do projeto de abandonar sua mulher. “Os dois c?njuges s?o como as duas rodas de um trator, eles n?o podem ir para frente na vida, a n?o ser permanecendo juntos”, martela a chefe da gangue. Quando ela fundou a “gangue cor-de-rosa”, dois anos atr?s, Sampat Pal Devi, 47 anos, n?o esconde ter se inspirado em Rani Laxmibai, uma rainha que, ao constituir o seu pr?prio ex?rcito em 1857, conseguira resistir ao cerco das tropas brit?nicas durante mais de um ano. “Uma mulher ? capaz de derrotar os mais poderosos”, concluiu Sampat daquele feito. Foi ela mesma quem escolheu a cor rosa para as vestimentas das suas justiceiras, uma cor que as mulheres da gangue n?o costumavam usar anteriormente.
No seu quartel-general, situado ? beira de uma art?ria empoeirada do vilarejo de Atarra, a maior parte dos alertas ? comunicada por telefone. Mas, precisamente neste dia, foram agricultores, homens e mulheres desesperados pela montanha de d?vidas que pesam sobre eles depois de tr?s anos de uma onda de seca sobre a regi?o, que compareceram para pedir por uma interven??o da gangue. As camponesas veneram a chefe da gangue como uma deusa. Quando ela chega ao local e desce do seu carro, elas se aproximam para tocar de leve sua cabe?a com as suas m?os. “O governo nada faz para nos ajudar a p?r o p?o na mesa”, se lamenta uma delas. “Inscrevam-se na gangue, e vistam-se com saris cor-de-rosa”, lhe responde imediatamente Sampat Pal Devi, “e n?s iremos, todas n?s, pedir aos bancos para aliviarem as suas d?vidas”.
Se a “gangue cor-de-rosa” aceita apenas mulheres como membros, ? porque, justamente por esta raz?o, “os policiais preferem pensar duas vezes antes de nos dispersarem com golpes de cassetetes”, explica uma das integrantes, com o seu rosto escondido por tr?s de um v?u rosa. At? o momento, a arma que elas usam nunca lhes serviu para desfechar golpes, mas as mulheres seguem treinando, por prud?ncia, o manejo do lathi, o bast?o de madeira que ? geralmente reservado aos homens quando eles trabalham nas lavouras.
Os cursos de forma??o s?o ministrados em p?tios e pra?as nas aldeias, e t?m como trilha sonora m?sicas que foram compostas por Sampat Pal Devi. “Durante o treinamento, n?s fazemos de conta que um inspetor de pol?cia est? ali, diante de n?s”, explica uma aluna que acaba de completar 70 anos de vida. A “gangue cor-de-rosa” reivindica apenas um ?nico ato de viol?ncia: um exemplar do c?digo civil foi arremessado na cabe?a de um inspetor que se recusava a apresentar as raz?es do encarceramento de um jovem rapaz oriundo da casta dos intoc?veis. Este ?ltimo foi libertado, enquanto a respons?vel pela “agress?o”, por sua vez, ficou detida na delegacia durante um dia inteiro. “O c?digo civil ao menos ter? servido para alguma coisa”, ironizam as integrantes da gangue.
Nem todas as leis que est?o em vigor no distrito do Bundelkhand est?o inscritas no c?digo civil. Um policial que est? mergulhado na leitura do seu jornal no p?tio da delegacia de Atarra admite prontamente esta situa??o: “Aqui, os homens pol?ticos s?o corruptos e ap?iam a m?fia. O nosso contingente conta apenas 20 policiais, o que ? muito insuficiente quando se trata de enfrentar mafiosos que t?m, cada um, mais de 50 homens armados sob as suas ordens”.
Entre os tr?ficos mais praticados na regi?o est? o dos cart?es de racionamento destinados aos mais pobres: de fato, na maioria dos casos eles s?o entregues apenas ?queles que aceitam desembolsar algumas r?pias de propina. No espa?o de dois anos, a gangue queimou, em tr?s oportunidades, cart?es de racionamento “ilegais” que as suas integrantes haviam coletado nas aldeias. “E n?s n?o pretendemos parar por a?, ao menos enquanto n?s continuarmos sendo as escravas de funcion?rios que supostamente est?o a? para nos servir”, explica Jai Prakash, a principal assistente de Sampat Pal Devi, antes de concluir: “[Karl] Marx alterou os rumos da hist?ria ao escrever o que ele estava vendo. N?s estamos tentando fazer a mesma coisa, explicando para os alde?es o que estamos vendo”.
O que elas est?o vendo, s?o as desigualdades entre homens e mulheres que perduram na ?ndia. No ranking elaborado a partir do ?ndice sobre as desigualdades entre os sexos, que foi publicado em 2007 pelo F?rum Econ?mico Mundial, a ?ndia aparece no 114? lugar, numa lista de 128 pa?ses. Em termos de “participa??o das mulheres na vida econ?mica”, este pa?s tem um desempenho ainda mais p?fio, aparecendo no 122? lugar. Apenas 3% dos cargos de executivos e 21% dos cargos de empregados s?o ocupados por mulheres. Este fen?meno pode ser explicado, entre outros, pela desigualdade dos sexos em rela??o ao acesso ? educa??o: apenas 48% das mulheres sabem ler e escrever, contra 73% dos homens.
O costume que faz com que o pagamento de um dote seja exigido da mulher no momento do seu casamento resulta num grande n?mero de atos de viol?ncia dom?sticos. Em 2006, 40% das mulheres declararam ter sido v?timas de maus tratos, segundo dados do inqu?rito nacional sobre as fam?lias, que foi conduzido pelo governo. Uma lei destinada a lutar contra este flagelo s? chegou a entrar em vigor em 2007. Na ?ndia, uma mulher ? estuprada, em m?dia, a cada meia-hora, enquanto uma mulher ? morta, em m?dia, a cada 75 minutos, revela um relat?rio que foi publicado em 2006 pelo Escrit?rio Nacional da Criminalidade.
As mudan?as de atitude j? s?o percept?veis na ?rea de influ?ncia da “gangue cor-de-rosa”. No pequeno vilarejo de Tanal, na margem de um canal drenado pela seca, no fundo do qual os esqueletos de b?falos jazem sobre uma terra repleta de rachaduras, um senhor idoso observa de longe as jovens mulheres trajando saris rosa. Elas est?o realizando uma reuni?o. “N?s tivemos a bandeira indiana que nos permitiu sair da coloniza??o brit?nica; daqui para frente, n?s precisamos dos seus saris rosa para nos livrar da corrup??o”, avalia, com o queixo apoiado sobre o cabo da sua bengala.
No Uttar Pradesh, os habitantes v?o perdendo progressivamente as esperan?as que eles acalentavam em rela??o aos seus eleitos, inclusive aqueles que pertencem ? sua casta. No ano passado, uma mulher oriunda das baixas castas, Mayawatti Kumar, foi eleita para dirigir o Estado. Mas, desde a sua elei??o, a aldeia s? foi contemplada com uma est?tua celebrando a figura emblem?tica e hist?rica dos intoc?veis: o doutor Ambedkar, que ? representado trajando terno e gravata, segurando um livro em sua m?o, reina no meio de crian?as que brincam na poeira. Os alde?es, por sua vez, at? hoje continuam ? espera da eletricidade e da constru??o de uma estrada. “Uma vez que eles ascendem ao poder, todos os pol?ticos se esquecem de n?s. A nossa derradeira esperan?a est? depositada na “gangue cor-de-rosa””, dispara uma mulher que est? lavando seus utens?lios de cozinha numa po?a de ?gua enegrecida.
No que vem a ser o pre?o a ser pago pelos seus primeiros sucessos, a “gangue cor-de-rosa” viu surgirem os seus primeiros desafetos, cr?ticos e detratores. “Sampat Pal nos acusa de todos os crimes para ganhar as elei?es”, considera um funcion?rio p?blico local, com as m?os colocadas sobre a sua escrivaninha, entre um tinteiro e dois telefones celulares. Embora ela j? tivesse se candidatado nas mais recentes elei?es, Sampat Pal Devi se defende de fazer pol?tica. Contudo, Sonia Gandhi, a presidente do Partido do Congresso, atualmente no poder, a convidou a comparecer em Nova D?li para propor-lhe integrar as fileiras do seu partido. Sampat Pal, puro e simplesmente, recusou a oferta: “N?o se pode defender ao mesmo tempo um partido pol?tico e os oprimidos. No dia em que eu ingressar na pol?tica, eu perderei a minha credibilidade”.
Tradu??o: Jean-Yves de Neufville
