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Magali Cunha Foto: O Globo

‘Vai e faz a mesma coisa...’

O Bom Samaritano deve ser lembrado na hora em que parlamentares que se chamam cristãos apoiam a redução da maioridade penal

Uma das narrativas mais conhecidas da Bíblia cristã é a “Parábola do Bom Samaritano”. Nela, um judeu que viajava por uma estrada perigosa foi assaltado, ferido e largado nu e quase morto na beira do caminho. Um líder religioso (sacerdote) transitava por ali, viu a cena e passou pelo outro lado. Logo depois, outro líder religioso, o que zelava pelo funcionamento do templo e cuidava da música nos cultos (levita), passou pelo mesmo lugar, viu aquele que sofreu violência e foi embora pelo outro lado. Em seguida, um samaritano, membro de etnia inimiga dos judeus, cujas disputas históricas não permitiam que sequer se falassem, chegou ao local, viu o judeu caído, machucado e sem roupa, e teve “compaixão” dele. Aproximou-se, limpou as feridas do homem, colocou-o no lombo do seu animal e o levou a uma hospedaria, onde cuidou dele. No dia seguinte, pagou as despesas e pediu que o dono do lugar continuasse com os cuidados. Jesus perguntou, então, ao mestre da lei judaica para quem narrava a história: “quem dos três foi ‘o’ próximo daquele homem?” A partir da resposta “aquele que o socorreu”, Jesus então disse: “vai e faz a mesma coisa”.

Esta história vem sendo explanada por líderes cristãos como um relato da importância da caridade, de se fazer o bem para quem está em necessidade. “Samaritano” é até o nome de obras religiosas de assistência, tamanho o destaque da parábola e seu símbolo. No entanto, esta leitura esvazia muito a força da narrativa de Jesus de Nazaré.

Ela tem duas fortes mensagens: a intolerância é superada em nome da dignidade da vida, e quando trazemos para dentro de nós o sofrimento do outro somos impelidos a ele. E temos um esvaziamento no título “O Bom Samaritano”. Claro, ele foi bom! Mas a história de Jesus diz muito mais do isto: o samaritano foi transgressor, subversivo. Socorreu o seu inimigo. Não se vingou dele, deixando-o caído. Foi bom porque rompeu com a convenção que promovia a intolerância entre os dois grupos, subverteu-a, porque entendeu que a vida e a dignidade estão acima de tudo isto.

Outro esvaziamento está no uso da palavra “compaixão” ou “pena”. No texto original em grego, o termo é efsplahnízome, que possui um sentido muito mais denso do que “pena” em português. Esta palavra significa “sentir nas entranhas/vísceras”. Ou seja, o samaritano viu o homem agredido e sentiu nas entranhas o sofrimento dele. Por isso rompeu com a lógica da intolerância em nome da vida! E a ironia é que, antes de o samaritano socorrer o judeu, dois religiosos haviam desprezado a dor do seu igual. Passaram ao largo. Ignoraram. Não foram impelidos a nada. A crítica de Jesus é aguda. Se há alguém a imitar, não são os religiosos preocupados com a lei, o templo, o culto, a música, mas sim quem rompe barreiras em nome da vida, da solidariedade e da dignidade.

Como não recordar esta história quando vivemos no país processos em que a religião tem servido para sustentar a indiferença com o sofrimento do outro e para incentivar a intolerância que resulta em vingança contra inimigos? Como não lembrar esta parábola quando adolescentes envolvidos com o crime são decretados inimigos da sociedade, e religiosos, como o sacerdote e o levita da beira da estrada, passam ao largo da realidade destes próximos de hoje? Quando parlamentares chamados cristãos apoiam e celebram a vingança com a possível aprovação da redução da maioridade penal, que contribui com mais destruição de vidas já em ruínas?

A crítica de Jesus permanece viva. Quem conta para o Senhor da Vida é quem tem “compaixão”. Não a pena que leva a atos de caridade que se extinguem neles mesmos. Mas quem sente nas entranhas o problema do outro e é impelido a socorrê-lo, não a destruí-lo.

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