Bonhoeffer

Havia um homem rico que se vestia de p?rpura e linho fino e que fazia diariamente brilhantes festins. Um pobre chamado L?zaro jazia coberto de ?lceras no p?rtico de sua casa. Ele bem quisera saciar-se do que ca?a da mesa do rico, mas eram antes os c?es que vinham lamber suas ?lceras. O pobre morreu e foi levado pelos anjos para um lugar de honra junto de Abra?o. O rico morreu tamb?m e foi enterrado. Na morada dos mortos, em meio ?s torturas, ergueu os olhos e viu de longe Abra?o com L?zaro a seu lado. Ele exclamou: “Abra?o, meu pai, tem compaix?o de mim e manda que L?zaro venha molhar a ponta do dedo na ?gua para me refrescar a l?ngua, pois eu sofro um supl?cio nestas chamas”. Abra?o lhe disse: “Meu filho, lembra-te de que recebeste tua felicidade durante a vida, como L?zaro, a infelicidade. E agora, ele encontra aqui a consola??o, e tu, o sofrimento. Lucas 16.19-25.








 


Nunca podem os entender e pregar o Evangelho de uma maneira palp?vel demais. A prega??o evang?lica correta deve ser como uma bela ma?? oferecida a uma crian?a ou um copo de ?gua fresca oferecida a um sedento, com a pergunta: Voc? quer? Assim dever?amos falar das coisas da nossa f?, de modo que as m?os se estendessem mais depressa do que n?s as pud?ssemos encher. Ent?o, as pessoas deveriam correr e n?o sossegar quando se falasse do Evangelho, assim como os doentes corriam ao encontro de Jesus, que ia de lugar em lugar curando, querendo ser curados a qualquer custo (mas o pr?prio Cristo curava mais do que convertia). N?o se trata apenas de uma maneira de falar.
Pois n?o deveria ser mesmo assim nos lugares em que ? pregada a boa-nova? Mas, de fato, n?o ? assim. Todos sabemos que n?o ?. E no entanto n?o dever?amos contentar-nos com isso, como se tivesse de ser assim.

Uma das raz?es – apenas uma! – ? porque simplesmente evitamos apresentar o Evangelho de maneira t?o palp?vel, t?o vivencial, como ele ? na verdade. Intelectualizamos o Evangelho, isto ?, n?s o aliviamos, o modificamos. Vejam, por exemplo, esse evangelho do homem rico e do pobre L?zaro. Passou a ser costume em toda essa hist?ria apenas o sentido de que os ricos devem ajudar os pobres. Em outras palavras, n?s a transformamos num exemplo moralizante. Mas, se deixarmos essa hist?ria agir sobre n?s com sua pujan?a original, veremos que ela n?o ? nada disso. Trata-se pura e simplesmente do an?ncio palp?vel da pr?pria boa nova. ? verdade, de uma forma t?o palp?vel e compacta que deixemos de lev?-la a s?rio.
Imaginemos aquela multid?o de doentes, pobres, miser?veis, pobres L?zaros, reunidos ao redor de Cristo, e ele come?ando a contar essa hist?ria do pobre L?zaro leproso, sentado na porta do homem rico, indefeso at? mesmo contra as investidas da cachorrada. E imaginemos aquele momento em que a hist?ria come?a a virar, com as palavras: "O pobre morreu e foi levado pelos anjos para um lugar de honra junto de Abra?o. L?zaro foi maltratado em sua vida, mas agora receber? o consolo". Certamente ouviram-se gritos de alegria e de esperan?a no meio da multid?o. Essa era a boa-nova, era a ?gua fresca procurada com sofreguid?o. Era o amor do pr?prio Deus que se dirigia aos pobres e miser?veis nessas palavras. Voc?s marginalizados, discriminados, pobres e doentes, voc?s desprezados, voc?s ser?o consolados. (…)
Esse ? o Evangelho da boa-nova do in?cio de um novo mundo e de uma nova ordem de Deus. Os surdos ouvem, os cegos recuperam a vista, os coxos andam direito e a boa-nova ? anunciada aos pobres (Lucas 7.22). (…)
Voc? ? feliz, L?zaro pobre, marginalizado, leproso, ontem como hoje, porque voc? tem um Deus. Ai de voc? que est? desfrutando os prazeres da vida e ? respeitado, ontem como hoje. ? a boa-nova de Deus para os pobres, anunciada de uma maneira concret?ssima.
Mas antes de continuarmos devemos dar ouvidos tamb?m a toda s?rie de obje?es indignadas.
Em nosso meio h? sempre aqueles que sabem melhor do que o pr?prio Novo Testamento o que Novo testamento pode querer dizer ou o que n?o. O que acabamos de apresentar seria uma interpreta??o grosseira do Novo Testamento, destinada ao povo rude. N?o pode ser esse o sentido das palavras. Aquilo que, no Novo Testamento, soa mais ou menos do modo que acabamos de exemplificar precisa ser espiritualizado. Chamamos isso de "sublima??o", isto ?, de refinamento, enobrecimento, espiritualiza??o, moraliza??o. N?o seriam simplesmente os externamente pobres os felicitados, nem os externamente ricos os condenados. O importante seria sempre a atitude assumida diante da pobreza e da riqueza. O exterior n?o teria nenhuma import?ncia, e sim a inten??o: rico em Deus ou, respectivamente, pobre em Deus… O perigo dessa obje??o est? no fato de ela conter um gr?o de verdade. Sabemos, no entanto, que sua verdadeira finalidade ? desculpar-nos. Como ? f?cil fugir das assim chamadas exterioridades para as intencionalidades: ser rico externamente, mas ser pobre na assim chamada inten??o. Seria t?o f?cil afirmar uma atitude vigorosa na interpreta??o do Evangelho nesses termos, como se tratasse de pobreza e riqueza externas, quando na verdade interessaria apenas ao aspecto interno. Mostrem-me, ent?o, onde, na hist?ria do pobre L?zaro, se diz alguma coisa a respeito de seu interior. Quem disse que ele foi um homem que interiormente nutria uma atitude correta em rela??o ? sua pobreza? Pelo contr?rio, pode at? ser que ele tenha sido um pobre importuno, j? que ficava na porta do rico e n?o ia embora. E quem nos diz algo a respeito da alma do rico? Esse ? justamente o aspecto aterrador da hist?ria: n?o h? moraliza??o. Fala-se simplesmente de rico e pobre, da promessa e da amea?a para um e outro. Parece que essas exterioridades aqui n?o s?o vistas como tais, pelo contr?rio, s?o levadas muito a s?rio. Por que Cristo teria curado os doentes e miser?veis, se n?o ligava para o aspecto exterior? Por que o Reino de Deus corresponde a fatos como: surdos ouvem, cegos recuperam a vista (Lucas 7.22)?…De onde vem essa arrog?ncia incr?vel de querer espiritualizar as coisas que Cristo viu e fez de maneira bem palp?vel?






 


Est? na hora de colocar um ponto final nesta espiritualiza??o despudorada e hip?crita do Evangelho. Tomem-no como ele ?, ou odeiem-no sinceramente!
Esse ?dio realmente n?o lhe faltou, justamente porque o Evangelho era visto com a singeleza que lhe ? pr?pria. O ?dio veio de dois lados diferentes.
Em que nos interessa um evangelho trazido para os fracos, plebeus, pobres e doentes? Somos homens saud?veis e fortes. Desprezamos a multid?o dos L?zaros. Desprezamos o Evangelho dos pobres. Ele perverte nosso orgulho, nossa ra?a, nossa for?a. Somos ricos, sim, com muito orgulho. ? uma maneira sincera de falar, certamente. Mas ao mesmo tempo ? um discurso extremamente leviano e cheio de ilus?es. Afinal, ? t?o simples desprezar a multid?o dos L?zaros!

Mas se um ?nico deles se coloca ? sua frente, o L?zaro desempregado, o L?zaro acidentado, o L?zaro arruinado por sua culpa, seu pr?prio filho como L?zaro pedinte, a m?e desamparada e desesperada, o L?zaro que se tornou criminoso, o L?zaro ateu, voc? seria capaz de enfrentar um indiv?duo desses dizendo: Eu o desprezo, L?zaro? Eu zombo da mensagem que o faz alegre. Voc? seria realmente capaz de dizer isso? Mas, se voc? n?o o consegue, por que faz como se fosse uma grande coisa poder ser assim?
Ou seria at? mesmo um esc?rnio em si mesmo consolar com a perspectiva de um futuro melhor num outro mundo aqueles que aqui vivem na mis?ria e na desgra?a? N?o se tem a impress?o que por detr?s disso se esconde apenas a inten??o de querer impedir de que esses infelizes se revoltem contra seu destino? Chamando-os de bem-aventurados para que fiquem quietos onde est?o, sem importunar os outros? N?o ? uma atitude c?nica falar em consola??o celeste quando n?o se quer dar consolo aqui na terra? O Evangelho n?o serviria, na verdade, como engodo para a estupidifica??o do povo? N?o se v?, no fundo, que a mis?ria n?o ? levada a s?rio, e que os c?nicos usam os chav?es religiosos apenas para esconder-se por tr?s deles? Ah, in?meras vezes aconteceu exatamente isso, at? em nossos dias. Quem ousaria neg?-lo? Mas um olhar para o Evangelho revela que n?o ? isto que est? escrito. Cristo chama os pobres de bem-aventurados (Lucas 6.20); mas tamb?m os cura, j? nesta vida. Sim, o Reino de Deus est? presente porque os cegos enxergam e os coxos andam (Lucas 7.22). Ele leva a mis?ria t?o a s?rio que precisa destru?-la no mesmo instante. Onde Cristo est?, o poder dos dem?nios precisa ser quebrado. Por isso ele cura e diz aos seus disc?pulos: Se crerdes em mim, fareis at? obras maiores do que eu fa?o (Jo 14.12). O Reino de Deus ainda est? no come?o. As curas s?o uma esp?cie de clar?es, como que rel?mpagos vindos do mundo novo. Mas, ent?o, a boa-nova j? se torna mais poderosa. Felizes v?s que agora chorais, haveis de rir; v?s que agora tendes fome, sereis saciados (Lucas 6.21). N?o se trata de um consolo c?nico, e sim de uma grande esperan?a: o mundo novo, a boa-nova, o Deus misericordioso, L?zaro em companhia de Abra?o, os pobres e marginalizados juntos de Deus – pode parecer tudo muito ing?nuo e palp?vel. E se mesmo assim for verdade? Se ? verdade? Continua sendo ingenuidade? Continua sendo n?o-espiritual? N?o seria o caso de abrir bem os ouvidos e ouvir novamente a mensagem desse acontecimento inaudito, que L?zaro ? levado pelos anjos – tanto ontem como hoje – para a companhia de Abra?o? E que o saciado, o satisfeito, aquele que vivia os prazeres da vida, que o homem rico tem de sofrer sede eterna?
At? hoje falamos de ambos como se um n?o tivesse nada a ver com o outro. Certamente n?o ? assim. L?zaro jaz ? porta do rico, e s? a pobreza de L?zaro faz com que o rico seja rico, assim como a riqueza do outro faz com que L?zaro seja pobre. N?o se diz o que o rico e o que o pobre fizeram e o que n?o deveriam ter feito; o ?nico acontecimento comum que atinge ambos igualmente ? a morte. Essa ? a luz estranha que ilumina os dois homens: ambos t?m de morrer e por ambos espera uma vida nova. Esse fato os liga mais do que qualquer lei moral prescrevendo que o rico deve ajudar o pobre. No fundo, ambos j? est?o ligados um ao outro pelo destino comum que os aguarda. Na morte, o rico deixa de ser rico e o pobre deixa de ser pobre.Eles passam a ser iguais e uma coisa s?. (…)
Por fim ficam as perguntas: Quem ? L?zaro? Quem ? o homem rico? E, finalmente, o que o homem rico deve fazer ent?o?
Quem ? L?zaro? Voc? mesmo sabe quem ?: o seu irm?o mais pobre, que n?o consegue dar conta de sua vida nem externa nem internamente, que se mostra muitas vezes tolo, impertinente, importuno, ?mpio, e que mesmo assim ? infinitamente carente e sofredor, mesmo que n?o se d? conta disso, que pede as migalhas de sua mesa. Talvez pense, um tanto lastimoso, que L?zaro ? voc? mesmo. S? Deus sabe se voc? ?. Mas n?o deixe de perguntar de vez em quando se voc? n?o poderia ser tamb?m o homem rico. Quem ? L?zaro? ? sempre o outro, o pr?prio Cristo crucificado que cruza o seu caminho sob mil formas desprez?veis. Sim, ? ele pr?prio o eterno L?zaro.
Mas ? necess?rio perguntar mais uma vez: Quem ? L?zaro? Com toda a mod?stia precisamos considerar, por fim, uma ?ltima possibilidade que surge no contorno de todas as possibilidades humanas e divinas: n?s todos somos L?zaros diante de Deus. Mesmo o homem rico ? um L?zaro. Diante de Deus, ? ele o pobre leproso. S? quando descobrimos que somos todos L?zaros, porque vivemos da gra?a de Deus, passamos a enxergar L?zaro em nosso irm?o.
E quem ? o homem rico? Nossa hist?ria n?o responde a essa pergunta. Certamente, n?o somos ricos. N?o estamos saciados e satisfeitos. N?o desprezamos os prazeres dessa vida. Ser? mesmo? Est? falando s?rio? Mesmo depois de encontrar L?zaro pela frente? Ou voc? n?o o encontra? Ser? mesmo que n?o somos n?s o homem rico? H? uma outra hist?ria que responde a essa pergunta. ? a hist?ria do jovem rico que era muito religioso e muito justo, mas que se retirou, triste, quando devia abandonar seus bens (Mateus 19.16-22). Esse ? o homem rico. E n?s?
E agora: o que o homem rico deve fazer? A resposta a essa pergunta est? na hist?ria do bom samaritano (Lucas 10.25-37). Na nossa hist?ria s? est? escrito que o homem rico deve perceber que por tr?s dele e de L?zaro est? a morte, e que por traz de L?zaro est? o pr?prio Deus, Cristo, e a eterna boa-nova. ? para abrirmos os olhos, para que enxerguemos o pobre L?zaro em toda a sua desola??o repulsiva e, por tr?s dele, Cristo que o convidou para a sua ceia o chama de bem-aventurado. Torne-se vis?vel, pobre L?zaro, torne-se vis?vel, Cristo no pobre L?zaro! Ah, que nossos olhos aprendam a enxergar!


Dietrich Bonhoeffer (no livro A resposta ?s nossas perguntas. Reflex?es sobre a B?blia. Ed. Loyola, S?o Paulo, 2008. pg.31-41.)
Cr?dito das imagens: Rich in hell/Christian Dale e The good Samaritan/Vincent van Googh-1890


Veja tamb?m:
Sobre a vida de Bonhoeffer

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