Folha de S?o Paulo – 21/06/2006
“Lei de mercado” leva igrejas ? Justi?a
Dizendo-se lesadas, pessoas que confiaram em promessas divinas pedem indeniza?es por danos morais e materiais
Para soci?logos, revolta ilustra mudan?a na rela??o com a religi?o, que presta servi?os e ? pautada pelo dinheiro de contribuintes
Jo?o Carlos Magalh?es e Matheus Pichonelli
As neopentecostais adotam a chamada Teologia da Prosperidade: prometem a quem provar sua f? –pagando d?zimo– cura, dinheiro, amor e outros pr?mios
Eles depositaram f?, confian?a e dinheiro em quem lhes prometeu prosperidade e dias melhores. At? que um dia, cansados de esperar pela provid?ncia divina, resolveram pedir o dinheiro de volta.
N?o s?o consumidores lesados, mas fi?is desapontados que, dizendo-se enganados por l?deres religiosos, tomaram o caminho da Justi?a para cobrar das igrejas indeniza?es por danos morais e materiais.
Nas estantes de f?runs e do Tribunal de Justi?a de S?o Paulo, casos de pessoas que investiram dinheiro em promessas _desde a celebra??o de um casamento at? o enriquecimento imediato_ esperam agora da lei dos homens uma senten?a final _ao menos nesta vida (leia os casos ao lado).
As hist?rias de Maria e de Carlos Marcelo, ex-freq?entadores da Igreja Universal do Reino de Deus, ilustram essa situa??o. Eles reclamam na Justi?a terem vendido bens, como apartamentos e carros, em troca de uma prosperidade financeira que n?o foi alcan?ada, de um milagre que n?o ocorreu. Nas audi?ncias, representantes das igrejas dizem que s?o mediadores da vontade divina e que n?o se comprometeram a cumprir as promessas feitas em nome de Deus. A moeda de troca, conforme argumentam, ? algo imensur?vel: a f?. Do outro lado, antigos fi?is afirmam que foram enganados, levados ao erro e at? extorquidos.
“Fui at? a igreja querendo dias melhores e tudo que me deram foi uma porrada no nariz”, conta, revoltado, o padeiro desempregado Jos? Bezerra Leite. Ele diz ter participado de uma sess?o de descarrego na Universal, na qual o auxiliar de um pastor, ao tentar exorciz?-lo, bateu sua cabe?a no banco. O saldo da frustra??o ? cobrado na Justi?a: R$ 5.000.
H? tamb?m a hist?ria de um cat?lico que pagou R$ 1.500 para casar na tradicional par?quia Nossa Senhora do Brasil, em S?o Paulo. Ele pediu o cancelamento do evento, pois o padre interferia nos preparativos. O p?roco se negou a devolver o dinheiro, e o caso foi ? Justi?a. O fiel parou de contribuir com a par?quia e agora reza em uma igreja ortodoxa, onde se casou.
Regras contra abusos
De acordo com o soci?logo e professor da USP Ant?nio Fl?vio Pierucci, o fato de os fi?is irem ? Justi?a reclamar seus direitos indica uma press?o para que sejam criadas regras que os protejam de abusos.
“Da mesma forma que um dia os consumidores se mobilizaram para que seus direitos fossem garantidos por lei, existe um movimento para que o fiel deixe de ser v?tima de humilha?es e para que a lei valha tamb?m para o pastor ou o cardeal”, avalia. “As igrejas no Brasil possuem privil?gios enormes, at? mesmo fiscais, que criam terreno para arbitrariedades. A pessoa ? livre para entrar, mas depois, pressionada e amea?ada, n?o consegue sair.”
O soci?logo Edin Sued Abumanssur, do departamento de teologia e ci?ncias da religi?o da PUC-SP, considera que a disputa jur?dica ? conseq??ncia do processo de mercantiliza??o da f?, na qual a rela??o entre igrejas e fi?is tende a ser mediada por dinheiro.
“A religi?o hoje ? um produto pelo qual a pessoa paga, mesmo que seja simb?lico. Se n?o, ela processa. ? a lei do mercado, uma tend?ncia em todas as igrejas”, analisa Abumanssur.
Na avalia??o de Pierucci, a frustra??o ? mais forte para quem foi atra?do por promessas e convertido a uma nova religi?o. “As pessoas chegam nessas novas igrejas com uma enorme expectativa de prosperidade instant?nea”, diz.
Abumanssur diz ainda que a Igreja Cat?lica, com a renova??o carism?tica, mostra que tamb?m est? atenta ao que o leigo quer. “Por ser uma rela??o mais mercantil, os fi?is agem racionalmente, como qualquer consumidor.”
Na opini?o de Ant?nio Evangelista de Souza, advogado de Maria _que processa a Universal_ queixas na Justi?a por quest?es religiosas tendem a ficar mais comuns. Para ele, a liberdade de culto, garantida pela Constitui??o, n?o pode blindar a igreja que promete ao fiel algo que n?o pode cumprir. “? um contrato manipulado.”
Num tempo em que cartas psicografadas s?o aceitas como documento da defesa, como ocorreu em maio deste ano em um tribunal do Rio Grande do Sul, muitas igrejas ainda n?o aceitam sentar no banco dos r?us e questionam a legitimidade do juiz para decidir sobre algo metaf?sico. Algumas chegam a citar longas passagens b?blicas para justificar suas atitudes.
Para o advogado da Congrega??o Crist? no Brasil Paulo Sanches Campoi, a liberdade de organiza??o e doutrina das igrejas n?o pode ser analisada por uma lei humana.
“O juiz ? uma autoridade estatal que n?o fez curso de teologia para decidir sobre a f?, algo ?ntimo que se insere na liberdade de se expressar religiosamente. Muitos morreram na fogueira por essa liberdade.”
De acordo com o advogado Adriano Ferriani, professor da PUC-SP e especialista em responsabilidade civil, n?o existe no Brasil uma lei que defina a rela??o entre fiel e igreja como um contrato a ser cumprido. Por isso, explica, ? comum que os magistrados julguem como improcedentes a?es movidas por fi?is desapontados. “Como n?o se trata de um contrato, deve-se provar que houve dano, culpa e nexo causal entre prometer e cumprir. ? muito dif?cil provar que o fiel ? muito ing?nuo e foi induzido ?quele erro. F? e boa vontade s?o coisas que n?o podem ser mensuradas.”