O sagrado e o humano



Roger Scruton*

N?o causa surpresa o fato de pessoas decentes, c?ticas, ao observarem o ressurgimento em nossos tempos de cultos supersticiosos, do conflito entre liberdades seculares e ?ditos religiosos, e do radicalismo isl?mico assassino, se mostrarem receptivas ?s pol?micas anti-religiosas de Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros. O “sono da raz?o” trouxe monstros, como Goya previu em sua gravura.

Hitchens ? um homem inteligente e altamente erudito que reconhece que o argumento mais ?til para ele era bastante conhecido h? 200 anos. Mas pensadores do Iluminismo, tendo mostrado que as alega?es da f? n?o contavam com fundamenta??o racional, n?o desdenharam a religi?o, como algu?m poderia desdenhar uma teoria refutada. A facilidade com que as doutrinas comuns da religi?o podem ser refutados os alertou para a id?ia de que a religi?o n?o ?, em ess?ncia, uma quest?o de doutrina, mas outra coisa. E decidiram descobrir o que poderia ser.

Para os pensadores no per?odo imediato p?s-Iluminismo, n?o era f?, mas f?s, no plural, que compunham a ess?ncia b?sica da teologia. Para os pensadores p?s-Iluminismo, os sistemas de cren?a monote?sta n?o estavam relacionados aos mitos e rituais antigos da mesma forma que a ci?ncia para a supersti??o, ou a l?gica para a magia. Em vez disso, eles eram cristaliza?es de uma necessidade emocional. Um mito n?o descreve o que aconteceu em algum per?odo obscuro antes da contagem humana de tempo, mas algo que acontece sempre e repetidamente. Ele n?o explica as origens causais de nosso mundo, mas recita sua permanente import?ncia espiritual.

Se voc? olhar para a religi?o antiga desta forma, ent?o inevitavelmente sua vis?o do c?none judaico-crist?o muda. A hist?ria da cria??o no G?nesis ? facilmente refutada como relato de eventos hist?ricos: como pode haver dias sem sol, homem sem mulher, vida sem morte? Mas lida como mito, este texto aparentemente ing?nuo revela ser um estudo da condi??o humana.

Mitos e rituais, escreveu Hegel, s?o formas de autodescoberta, por meio das quais entendemos o lugar do indiv?duo em um mundo de objetos e a liberdade interior que condiciona tudo o que fazemos. A ascens?o do monote?smo a partir das religi?es polite?stas da antiguidade n?o ? apenas uma forma de descoberta, mas de autocria??o, ? medida que o esp?rito aprende a reconhecer a si mesmo no todo das coisas e a superar sua finitude.

Entre estas primeiras incurs?es na antropologia da religi?o e estudos posteriores, dois pensadores se destacam como fundadores de um novo empreendimento intelectual – um empreendimento que parece n?o ter sido notado por Hitchens, Dawkins ou Daniel Dennett. Os pensadores s?o Friedrich Nietzsche e Richard Wagner, e o empreendimento intelectual ? o de mostrar o lugar do sagrado na vida humana e o tipo de conhecimento e entendimento que nos chega por meio da experi?ncia das coisas sagradas.

A li??o que ambos os pensadores extra?ram dos gregos ? de que ? poss?vel subtrair os deuses e suas hist?rias da religi?o grega sem tirar o mais importante. Esta coisa tinha sua realidade prim?ria n?o em mitos, teologia ou doutrina, mas nos rituais, nos momentos que ficam fora do tempo, nos quais a solid?o e a ansiedade do indiv?duo humano s?o confrontadas e superadas por meio de uma imers?o no grupo. Ao chamar estes momentos de “sagrados”, n?s reconhecemos tanto seu complexo significado social quanto o al?vio que fornecem ? aliena??o.

A tentativa de Nietzsche e Wagner de entender o conceito do sagrado foi levada adiante n?o por antrop?logos, mas por te?logos e cr?ticos. ? a teoria de Ren? Girard, me parece, que mais urgentemente precisa ser debatida, agora que o triunfalismo ate?sta est? eliminando todos os nuances.

Em “A Viol?ncia e o Sagrado” (1972), Girard come?a com uma observa??o que nenhum leitor imparcial da B?blia judaica ou do Alcor?o pode deixar de fazer, que ? a de que a religi?o pode oferecer paz, mas tem suas ra?zes na viol?ncia. O Deus apresentado nestes textos ? freq?entemente irado, dado a acessos de destrui??o. Ele faz exig?ncias ultrajantes e sanguin?rias – como a exig?ncia para que Abra?o sacrifique seu filho Isaac. Ele ? obcecado por genit?lia e inflex?vel em que deva ser mutilada em sua honra.

Pensadores como Dawkins e Hitchens conclu?ram que a religi?o ? a causa desta obsess?o sexual e viol?ncia, e que os crimes cometidos em nome da religi?o podem ser vistos como a refuta??o definitiva dela. Nem tanto, argumenta Girard. A religi?o n?o ? a causa da viol?ncia, mas a solu??o para ela. A viol?ncia vem de outra fonte e n?o h? sociedade sem ela desde a primeira tentativa dos seres humanos viverem juntos. O mesmo pode ser dito da obsess?o religiosa com a sexualidade: a religi?o n?o ? a causa, mas uma tentativa de resolv?-la.

Como Nietzsche, Girard v? a condi??o primitiva da sociedade como uma de conflito. ? do esfor?o para resolver este conflito que nasce a experi?ncia do sagrado. Esta experi?ncia nos vem de muitas formas -ritual religioso, ora??o, trag?dia – mas sua verdadeira origem est? nos atos de viol?ncia comunal. As sociedades primitivas s?o invadidas pelo “desejo mim?tico”, ? medida que rivais lutam para igualar as aquisi?es materiais e sociais do outro, acentuando o antagonismo e precipitando o ciclo de vingan?a.

A solu??o ? identificar uma v?tima, algu?m marcado pelo destino como sendo de fora da comunidade e portanto merecedor da vingan?a contra ela, que pode ser alvo do desejo de sangue acumulado, e que pode conduzir o ciclo de retribui??o ao fim. O bode expiat?rio ? a forma da sociedade de recriar a “diferen?a” e portanto se restaurar. Ao se unirem contra o bode expiat?rio, as pessoas s?o libertadas de suas rivalidades e reconciliadas. Por meio de sua morte, o bode expiat?rio purga a sociedade de sua viol?ncia acumulada. A santidade resultante do bode expiat?rio ? o eco de longo prazo do temor reverente, do al?vio e da religa??o visceral ? comunidade que foi experimentada com sua morte.

Segundo Girard, a necessidade do bode expiat?rio sacrificial est? implantada na psique humana, origin?ria da tentativa de formar uma comunidade dur?vel na qual a vida moral pode ser buscada com sucesso.

Em muitas hist?rias do Velho Testamento, n?s vemos os antigos israelitas lidando com este ?mpeto sacrificial. As hist?rias de Caim e Abel, de Abra?o e Isaac e de Sodoma e Gomorra s?o res?duos de conflitos estendidos, nos quais o ritual foi desviado da v?tima humana e ligado primeiro a sacrif?cios animais, depois ?s palavras sagradas. Por este processo uma moralidade vi?vel surgiu da competi??o e conflito, e das rivalidades viscerais da predatoriedade sexual.

Logo, a experi?ncia do sagrado n?o ? um res?duo irracional de medos primitivos, nem uma forma de supersti??o que algum dia ser? eliminado pela ci?ncia. Ela ? a solu??o para a agress?o acumulada que existe no cora??o das comunidades humanas. ? assim que Girard explica a paz e celebra??o que acompanha o ritual da comunh?o – o senso de renova??o que sempre precisa ser ele mesmo renovado. Girard descreve caracter?sticas profundas da condi??o humana, que podem ser observadas tamb?m nos cultos do mist?rio da antiguidade e nos templos locais do hindu?smo, assim como no “milagre” cotidiano da Eucaristia.

H? muitos elementos na teoria de Girard que podem ser criticados – como a id?ia de que as institui?es humanas podem ser explicadas pela cria??o de mitos. Mas tais cr?ticas n?o influenciam, ao que me parece, o descaso com que as id?ias de Girard s?o tratadas.

Eu suspeito que, como Nietzsche, Girard nos recordou das verdades que preferir?amos esquecer – em particular, a verdade de que a religi?o n?o se trata basicamente de Deus, mas do sagrado, e que a experi?ncia do sagrado pode ser suprimida, ignorada e mesmo profanada, mas nunca destru?da.

* Roger Scruton ? um fil?sofo e professor de pesquisa do Instituto para as Ci?ncias Psicol?gicas, Virg?nia.

Tradu??o: George El Khouri Andolfato

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