H? 492 anos o monge e professor alem?o Martinho Lutero iniciou um movimento de reforma que afetou profundamente o cristianismo. Lembrando a seus irm?os e irm?s as palavras inspiradas das Escrituras, ele ensinava que a justifica??o s? ? poss?vel pela f? e que todos(as) vivemos sob a gra?a de Deus. Sem meias palavras, Lutero dizia "sou um pobre verme diante da justi?a de Deus". Afirmava que o pecador carece totalmente da gl?ria de Deus; a qual ? dada de gra?a, a todas as pessoas, porque Ele, como Pai amoroso, ama a todas.
? o amor que recebemos de Deus e compartilhamos uns com os outros que nos torna valiosos. Hoje, por?m, muitos esqueceram essa mensagem. Buscam a salva??o por seus pr?prios m?ritos e para sua pr?pria gl?ria. Cultivam uma f? egoc?ntrica, hedonista e pueril que reflete uma sociedade adoentada e carente do Evangelho. Fam?lia e igreja podem atuar na cura da sociedade dando aten??o especial ao desenvolvimento psicol?gico e espiritual de suas crian?as, cujo dia tamb?m celebramos em outubro. ? sobre este tema que trata o artigo que segue, extra?do da revista Signos, publica??o do Conselho Latino Americano de Igrejas.
O narcisismo ? como uma enfermidade que impede ? pessoa interessar-se ou amar a outra, porque todo seu ser gira ao redor de si mesmo e evita envolver-se com outros. (Freud, 1914)

A popula??o latinoamericana est? decepcionada pela pouca aten??o que suas sociedades e governantes lhe d?o e por este motivo estas pessoas abandonam o ideal de uma sociedade protetora e caem em uma atitude individualista, consumista e egoc?ntrica. Em outras palavras, "se a sociedade n?o vela por meu bem estar como cidad?o(?), ent?o eu me encarrego de me garantir uma vida prazerosa e segura", o que conduz algumas vezes a atitudes narc?sicas. Os centros comerciais e as grandes igrejas que pregam a teologia da prosperidade poderiam classificar-se como espa?os que alimentam esta atitude narc?sica e man?aca.
| Segundo Freud, a sociedade vive geralmente em uma rela??o de conflito m?tuo com seus integrantes, j? que tem a fun??o repressora de controlar os instintos de seus cidad?os. Neste sentido, Freud qualificaria a rea??o man?aca das pessoas como um reflexo da rela??o conflitiva n?o resolvida entre os(as) cidad?os(?s) e sua sociedade. |
Esta leitura da rela??o indiv?duo-sociedade era t?o conflitiva e pessimista que Freud percebia no futuro uma iminente ou radical ruptura do sistema por m?tua hostilidade n?o resolvida.
Em contrapartida, a narra??o de G?nesis 3 mostra que Deus criou, desenhou e executou sua cria??o de tal maneira que tudo servia para nutrir, sustentar e proteger a suas criaturas de forma integral. Nesta perspectiva crist?, ent?o, a teocracia prop?e uma harmoniosa rela??o tripartite: Criador-sociedade-indiv?duo. Assim, observamos que a perspectiva freudiana ? oposta ? judaico-crist?, a qual sustenta que a natureza e as estruturas sociais t?m, desde seu in?cio, o prop?sito divino de proteger ? humanidade. E mais: foi a desobedi?ncia de Ad?o e Eva que provocou uma mudan?a relacional qualitativa entre a humanidade e o meio ambiente e, posteriormente, entre indiv?duo e a sociedade.
Surgimento da personalidade narcisista
Winnicott, psic?logo psicodin?mico e pesquisador do desenvolvimento emocional do ser humano, indica que a sociedade tem, entre outras responsabilidades, a de velar pelo bem estar mental de seus cidad?os. Esta afirma??o ? uma transposi??o da pesquisa feita acerca da fam?lia, na qual ele conclui que os pais t?m a responsabilidade de prover uma estrutura e um ambiente que responda empaticamente ?s necessidades infantis para que a crian?a se desenvolva saudavelmente.
Kohut, um reconhecido psic?logo especializado em estudos sobre narcisismo, amplia a proposta anterior indicando que se os pais n?o prov?em adequadamente a possibilidade de serem espelhos de seus filhos e de serem idealizados por eles, ent?o a pessoa pode desenvolver uma personalidade narcisista. Neste caso, quando a crian?a percebe que seus pais n?o velam por suas necessidades emocionais e biol?gicas, desenvolve uma personalidade narcisista que, na fase adulta, facilmente se manifesta em a?es egoc?ntricas e defesas man?acas. A pessoa em seu desenvolvimento conclui mentalmente que deve centrar-se em sua pessoa, atendendo a si mesma para sobreviver, porque seus pais n?o s?o de confiar ou n?o velam por seu bem estar.
| O objetivo deste ensaio ? estabelecer uma poss?vel rela??o entre o alto consumo religioso de uma pessoa narcisista e o contexto social de onde se promove o consumo ao favorecer as leis de mercado, ignorando o custo social dos(as) cidad?os(?s). |
A pessoa narcisista ? aquela que percebeu ter vivido em um ambiente desassistido por seus pais, o que a leva a pensar em sua pr?pria pessoa sem importar-lhe a rela??o com os(as) demais, a menos que haja em tal rela??o um prop?sito utilit?rio. Freud qualificava estas pessoas de "n?o apropriadas para submeter-se a uma psican?lise" devido a seu pouco interesse e pouca capacidade de investir em rela?es interpessoais, a menos que revertam algo a seu favor. Pergunto-se se esta perspectiva ? tamb?m levada – humanamente – ? ?rea da f? crist?.
A hip?tese, segundo Freud, seria a de que as pessoas narcisistas n?o buscam ter uma rela??o adulto-adulto de m?tua entrega e recep??o, mas uma rela??o utilit?ria e egoc?ntrica. Neste sentido, se poderia dizer que alguns indiv?duos narcisistas buscam viver sua f? desde que ela favorece aos seus interesses pessoais. Seu interesse consistiria, ent?o, em ser ativo na f? para se sentir bem, para se considerar melhor que os outros, para conquistar mais b?n??os e prosperidade, sa?de, santidade, finan?as, etc. por?m, sem mostrar interesse pela transforma??o da comunidade
Superar a atitude narcisista e man?aca
A psicologia nos tem mostrado que existe uma rela??o entre a neglig?ncia dos pais e a forma??o de uma personalidade narc?sica nos filhos desassistidos. Vale a pena destacar que o fator causal do narcisismo citado n?o ? a pobreza, mas a forma como agem os pais frente ?s necessidades de aten??o e afirma??o inerentes aos filhos.
? certo que a personalidade ? uma estrutura dif?cil de mudar, por?m tal mudan?a, ainda que dif?cil, n?o ? imposs?vel. Por exemplo, ? na fam?lia onde podemos corrigir os erros cometidos e reparar as feridas existentes. Corresponde ? fam?lia orientar o servi?o ao pr?ximo e n?o servir-se do pr?ximo para bem pr?prio. Na fam?lia se pode evitar o controle dos outros para benef?cio pr?prio e estimular o desenvolvimento de uma interdepend?ncia e autonomia saud?veis entre seus membros. Desejar um controle absoluto sobre os outros ? uma fantasia muito forte na personalidade narcisista, a qual se deve resistir.
? importante que os pais contribuam para que seus filhos os admirem porque, ao faz?-lo, permitem que esta imagem ideal de pai ou de m?e constitua parte da imagem que os filhos t?m de si mesmos. O processo mental poderia ser o seguinte: "se voc? ? o melhor pai, o melhor professor, como eu sou parte de voc?, ent?o eu tamb?m sou valioso". Esta experi?ncia intraps?quica e interpessoal impede que os(as) filhos(as) recorram a posi?es narcisistas para se sentirem seguros(as) de suas personalidades e os impulsiona a confiar em seus pais para sua sobreviv?ncia, em lugar de se ocuparem disso por si mesmos(as).
Ao mesmo tempo, a Igreja necessita retomar a dimens?o integral da f? em seu chamado individual e comunit?rio. O Evangelho tem duas dimens?es, pessoal e comunit?ria. A pessoal se d?
| A passagem b?blica da "Transfigura??o" nos ilustra isso: justo quando Jesus Cristo se oferecia para sacrificar-se e realizar a grande Miss?o de Deus de redimir sua cria??o, os disc?pulos estavam pensando apenas em si mesmos: |
"Senhor, por que n?o fazemos uma morada aqui para desfrutar da rela??o que temos contigo?". Parece que os disc?pulos n?o entenderam o prop?sito da transfigura??o, que n?o era o "banquetear-se espiritualmente, fazerem-se mais santos ou sentirem-se bem", mas buscar uma comunh?o mais ?ntima e estreita com o Pai, para poder fazer a Missio Dei.
Como igreja, necessitamos deixar de fazer demandas infantis a Deus e, sim, nos oferecermos e nos colocarmos a seu servi?o, e sermos colaboradores na extens?o de seu reino e n?o na do nosso. Precisamos, como l?deres, ensinar a espera e a toler?ncia adequadas ?s frustra?es. A personalidade infantil n?o pode esperar, tem pouco n?vel de toler?ncia, decomp?e-se facilmente frente ?s frustra?es e age de forma "birrenta" e obstinada quando n?o se cumpre o que deseja.
A “Transfigura??o de Cristo” ?ltimo quadro de Rafael. A passagem b?blica mostra que os disc?pulos buscavam apenas o seu bem estar espiriutual; ainda n?o estavam prontos para a Miss?o. Haver? alguma rela??o entre a pouca toler?ncia a milagres n?o concedidos e o alto ?ndice de turismo intereclesial existente? Pergunto-me o que ensina um l?der elevando a voz e demandando que Deus outorgue certa b?n??o, cura, dinheiro ou trabalho…

N?o est? modelando uma atitude infantil? Deus poderia ter reconciliado o mundo s? ao desej?-lo e diz?-lo, sem precisar esperar um momento hist?rico apropriado, e sem esperar que seu Filho amado crescesse biol?gica, psicol?gica e espiritualmente para cumprir com a miss?o de Deus.
A Igreja pode ensinar a congrega??o a n?o assumir defesas psicol?gicas narcisistas, infantis e man?acas como a sociedade o faz, mas, ao contr?rio, ver a realidade no contexto da soberania de Deus com f?, racionalidade e maturidade. N?o copiemos o modelo de sociedade que enfatiza o material sem se importar com o alto custo social que isto provoca. Uma sociedade narcisista e man?aca ? parte deste resultado, que a torna muito fr?gil e com potencial de autodestrui??o. A igreja pode e deve contribuir com uma contraproposta em lugar de aliar-se ou copiar o modelo que a sociedade atual estimula.
Carlos Pinto, pastor presbiteriano, psic?logo cl?nico e familiar membro docente da Associa??o Latinoamericana de Aconselhamento Pastoral e Familiar. (Tradu??o:

