Nesse per?odo de f?rias, a tela do cinema ou da TV pode proporcionar mais do que um momento de lazer em fam?lia: pode trazer alimento espiritual
![]() | Quero conhecimento. Quero que Deus apare?a e converse comigo. Mas ele fica em sil?ncio…, diz o cavaleiro. Voc? est? se magoando a si mesmo, responde a Morte. |
Antonius Block volta das Cruzadas e encontra a Morte. Prop?e a ela uma partida de xadrez. Enquanto estiverem jogando, ele ainda ter? tempo para buscar respostas, para encontrar Deus. Afinal, "ningu?m pode enfrentar a Morte sabendo que foi tudo em v?o". Prepare-se. Agora voc? vai viver uma hist?ria de encontros e fugas, alegrias e incertezas, amor e revolta. A hist?ria mais fascinante de todos os tempos…a "?nica", diriam os te?logos: a rela??o entre o homem e o sagrado. E quem vai nos contar essa hist?ria ? o cinema. O filme "O S?timo Selo", do diretor sueco Ingmar Bergman ? um dos protagonistas dessa narrativa.
![]() | Por que eu n?o posso tirar Deus de dentro de mim? |
Se o especialista em hist?ria das religi?es Mircea Eliade pudesse responder ao cavaleiro atormentado de Bergman, ele diria que a mitologia e a religi?o simplesmente fazem parte do homem, mesmo que esquecidas no canto mais fundo do inconsciente. "Come?amos a compreender hoje algo que o s?culo XIX n?o podia nem mesmo pressentir: que o s?mbolo, o mito, a imagem pertencem ? subst?ncia da vida espiritual, que podemos camufl?-los, mutil?-los, degrad?-los, mas que jamais poderemos extirp?-los". Assim, n?o surpreende que o cinema, que tamb?m j? foi chamado de "f?brica de sonhos", tenha apresentado imagens religiosas logo nos primeiros anos de vida, apesar de sua origem genuinamente profana – um fruto da revolu??o industrial.
Foi no ano de 1895 que os irm?os Lumi?re, Louis e Auguste, mostraram ao mundo o cinemat?grafo, invento que buscava reproduzir a realidade quadro a quadro. Mas se os irm?os fot?grafos deram corpo ao cinema, foi o m?gico Georges M?li?s que lhe conferiu alma, ao descobrir a trucagem. A partir das novas possibilidades t?cnicas, ele incorporou a fantasia ao cinema e, assim, abriu um novo campo para a cria??o de filmes como o seu "Cristo andando sobre as ?guas", de 1899. Surgiu, ent?o, uma avalanche de filmes sobre Jesus e outros temas b?blicos. ? claro que j? havia um interesse pr?tico, lembra Ismail Xavier, professor de cinema na Universidade de S?o Paulo: em tempos de cinema mudo, era muito mais f?cil contar uma hist?ria j? conhecida por todos, como a vida de Cristo. Afinal, o cinema nunca esqueceu sua origem como produto da ind?stria cultural: era necess?rio criar p?blico para a nova forma de entretenimento.
Voc? n?o ir? parar de fazer perguntas? diz a Morte. Nunca vou parar, responde o cavaleiro. Mas voc? n?o ter? respostas.
Para Martin Cezar Feij?, professor de Educa??o, Arte e Hist?ria da Cultura da Universidade Mackenzie, ? justamente da tens?o entre o humano e o divino que nasce a poesia. Contudo, essa tens?o n?o existe, necessariamente, nos filmes que recebem o r?tulo de "religioso". Ele cita como exemplos os grandes ?picos hollywoodianos do p?s-guerra, como o filme "Os Dez Mandamentos", de 1956, de Cecil B.DeMille. Eles trazem um discurso muito mais ideol?gico do que religioso, apregoando os valores do american way of life. A "mensagem" dos Dez Mandamentos est? menos nas palavras do Mois?s com jeit?o renascentista, interpretado pelo ator Charlton Heston, do que no pr?logo do filme, um discurso feito pelo pr?prio DeMille:"O homem deve ser governado por leis divinas ou se submeter aos desmandos de um ditador?"
Mas a ideologia de Hollywood ?, acima de tudo, o lucro. Por isso, os filmes dessa ?poca tamb?m traziam a receita certa para lotar bilheterias e enfrentar a concorr?ncia da televis?o emergente: imagens grandiosas e um melodrama com pitadas de erotismo. Em meio a uma f? rom?ntica, era sempre poss?vel encontrar o olhar insinuante de uma diva ou um belo par de pernas. Conta-se que o diretor D.W.Griffith, autor de Intoler?ncia – considerado um dos melhores filmes da hist?ria do cinema e um dos maiores fracassos de p?blico – chegou a comentar, indignado: "Eu nunca vou usar a B?blia para despir uma mulher!"
?cido na cr?tica, o te?logo Roberto Francisco Daniel, o padre Beto, cin?filo e autor de livros sobre o assunto, define os ?picos religiosos hollywoodianos com uma ?nica palavra: "kitsch". Mais do que uma defini??o est?tica, para ele kitsch ? o filme destinado a trazer a "verdade" pedagogicamente. Segundo o padre Beto, esse ? o caso do filme "Maria, M?e do Filho de Deus", concebido e protagonizado pelo padre Marcelo Rossi. "O m?ximo que se pode dizer do filme ? que ? bonitinho. Mas n?o leva a uma reflex?o sobre minha vida".
O trovador Jof v? a Virgem Maria com o menino Jesus. A esposa Mia sorri. Ela j? n?o se espanta com as vis?es do marido, que ainda tenta convenc?-la: Voc? n?o acredita, mas ? verdade. N?o do tipo de verdade que voc? v?, mas outro tipo.
Para o pastor luterano Joe Mar?al Gon?alves dos Santos o filme kitsch hollywoodiano tamb?m poderia ser chamado de idol?trico. "Idol?trico ? o oposto de simb?lico", ele explica. "Como s?mbolo, Deus sempre est? al?m do que chamamos Deus. J? o fundamentalista vai dizer que Deus est? na B?blia ou no Alcor?o e ponto final. No cinema, o perigo da idolatria ? a simplifica??o da realidade". O te?logo Etienne Higuet concorda. Professor da Universidade Metodista, ele defende que a imagem tem que se tornar "transparente" ao sagrado. Ou seja, vemos o sagrado "atrav?s" e n?o "na" imagem.
Higuet e Mar?al fundamentam suas opini?es nos estudos de um te?logo alem?o do princ?pio do s?culo passado, Paul Tillich, expoente da chamada "teologia da cultura". Segundo Tillich, a religi?o seria a dimens?o da profundidade que perpassa todos os aspectos do esp?rito humano. Assim, ? poss?vel distinguir o sagrado em manifesta?es culturais que, aparentemente, n?o s?o religiosas. ? o que o pastor Joe Mar?al faz na avalia??o do filme Central do Brasil, tema de sua tese de mestrado na Escola Superior de Teologia de S?o Leopoldo, Rio Grande do Sul. No filme de Walter Salles, a professora aposentada Dora, solit?ria e amarga, sobrevive escrevendo cartas para os analfabetos que passam pela Central do Brasil, no Rio de Janeiro. L? ela conhece o menino Jos?, que perdeu a m?e atropelada. A contragosto, acaba levando-o ao interior do nordeste, para que ele encontre o pai. O filme expressa movimentos de busca e fuga relacionados ? figura paterna: Jos? busca o pai no sert?o, Dora foge de suas lembran?as de inf?ncia. Numa cena que lembra uma "Piet? invertida", Jos? d? colo a Dora e o relacionamento de ambos ganha nova dimens?o. "A exaust?o de Dora na Casa dos Milagres ? a morte simb?lica que d? lugar a uma nova Dora, renascida nos bra?os de Josu?.", diz Mar?al.Segundo o pastor, o filme desidolatra a figura do pai. N?o nega sua legitimidade, mas a ressignifica, apontando para o que ? "central": o indiv?duo aut?nomo diante do outro. "No abandono surge a possibilidade de descobrirem-se como centros de si mesmo, por meio do encontro m?tuo".
![]() | A tigela de leite e de morangos silvestres ? compartilhada por todos. Satisfeita, a atriz Mia deita-se no gramado sob o sol e diz: "Como isso ? bom. Um breve momento. Todos os momentos s?o breves, um dia n?o ? como o outro". |
No filme de Bergman, o cavaleiro Antonius Block e seu escudeiro J?ns parecem ser duas faces de uma mesmo desencanto: J?ns nega o sagrado pelo materialismo ("Desprezo a Morte, dou risada de Deus, por?m, agrado a uma mulher"); Antonius o contesta pelo racionalismo. A fam?lia de artistas circenses – Mia, Jof e o beb?(esses nomes n?o lembram os de Maria e Jos??) optaram por um outro caminho: o amor ? vida e ? arte.
O resgate do sagrado pela arte fica ainda mais evidente em Andrei Rublev, filme de 1966, do cineasta russo Andrei Tarkovsky. Durante toda a vida o monge e pintor de ?cones do s?culo XV foi confrontado com a maldade do homem deca?do. Haver? salva??o para a humanidade? A ang?stia leva ao isolamento: Andrei faz voto de sil?ncio e desiste de pintar. At? que ele encontra o adolescente Boriska, filho de um fabricante de sinos morto pela peste. Herdeiro do of?cio paterno, o garoto ? incumbido de construir um sino para o rei. E se falhar, ser? decapitado. Boriska entrega-se com toda paix?o ao trabalho e, quando o sino ecoa, confessa, entre l?grimas: havia mentido ao dizer que conhecia os segredos do pai. Sua obra n?o nascera, portanto, do conhecimento, mas da f?. A partir desse momento, Andrei Rublev volta a pintar. ? claro que a maldade e o sofrimento humanos ainda existem. Por quanto tempo? "Para sempre, suponho", responde o diretor Tarkovsky em uma das cenas do filme. "No entanto, qu?o belo ? tudo isso".
Suzel Tunes
(Publicada originalmente na Revista das Religi?es, Editora Abril)
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